NA CLÍNICA

Seguindo orientações de minha endocrinologista de estimação, resolvi fazer uma visita de cortesia ao nefrologista. Meus últimos exames indicam que algo não anda jogando por música na região dos rins.

Como a minha porção majoritariamente otimista nunca considera a possibilidade de encarar um chá de cadeira de algumas horas, cheguei esbaforido em cima da hora, crente que estava atrasado.

Apertei o botãozinho azul e puxei a senha: 244. Vi que o atendimento estava ali por volta do 228, foi quando notei que deixei o celular em casa, o que significava que não teria muita diversão até ser chamado. O primeiro atendimento era para, segundo a terminologia consagrada, “fazer a ficha”; o chamado para o consultório do médico é outra história, calma aí.

Vagou uma poltrona, sentei, ao lado de uma senhora da cara ruim. À nossa frente uma TV, ligada na – claro! – Globo, estava passando o programa da Fátima Bernardes. Considerando o dia de hoje, os temas eram só tragédias: o massacre de ontem em Suzano-SP e o aniversário de morte de Marielle e Anderson. A mulher da cara ruim começou a abrir a caixa de ferramentas:

– Já falei para o Dr. Heitor substituir essa secretária velha, ô mulher lerda, meia hora pra atender uma pessoa! Velha mesmo, não tem essa de terceira idade, é V-E-L-H-A, que nem eu! E molenga!

Calado estava e fiquei, faz tempo que não desperdiço minha santidade com gente triste. Não deu cinco minutos, eis que a mulher da cara ruim volta ao ataque, desta vez aproveitando o tema da TV: “Não aguento mais ver essa Marielle, só porque morreu, tanta gente morre todo dia e ninguém fala nada, se estivesse quieta não tinha acontecido nada, ela é da turma da maconha, e eu nem sei se é mesmo mulher!”. Calado permaneci, mas é possível que tenha deixado escapar um sorriso de canto de boca em homenagem à pobreza de espírito da criatura.

– O senhor acha que eu estou exagerando?

Partindo do princípio de que quem pergunta quer saber, satisfiz a curiosidade da mocreia: “acho que a senhora passou da idade de ter conserto”.

Silêncio lá e cá.

De repente chega a hora da minha senha e me encaminho serelepe para ser atendido pela secretária velha e molenga. Chama-se Tânia e é muito simpática. Logo volto para a poltrona, mas escolhi outra.

Ao meu lado um senhorzinho com um smartphone de responsa, tipo 5,5″ de tela, mostrando um vídeo com um maluco dando pauladas em carros estacionados na rua. Caí na besteira de perguntar do que se tratava: “é um desses muçulmanos do Marrocos, olha aí, se fosse no Brasil já tinha levado peia, mas lá na Europa (sic) tem essa coisa de direitos humanos, os caras fazem o que querem e ninguém pode falar nada, senão vão dizer que é islamofóbico e aí é processado, então os caras impõem a religião deles, as leis deles blá blá blá”. Comentei que era mais ou menos como no Brasil, com os evangélicos querendo impor a religião deles, as leis deles, a moral e os bons costumes deles. Pra quê!

Silêncio lá e cá de novo. E ainda demorou um bocado para o médico me chamar.

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