O IMPOSTO E A RENDA

Sempre achei estranha essa mania que o governo brasileiro tem de achar que salário é o mesmo que renda. Rezam as cartilhas de contabilidade, finanças e economia que renda é o resultado – que pode até ser negativo – de uma aplicação de dinheiro em determinado ativo financeiro. Ações, por exemplo, renda fixa ou até mesmo a popularíssima caderneta de poupança, além de aluguéis e outros investimentos. Salário é pra pagar moradia, escola e supermercado. Mas é bem mais cômodo para o governo pensar assim, porque abocanha na fonte e não tem que correr atrás de sonegadores que, não raro, financiam as campanhas políticas da maioria dos bandidos que habitam as torres gêmeas de Brasília. Não dá pra bater duro na galinha dos ovos de ouro, né não?

Estou aqui às voltas com minha declaração anual, feliz da vida porque a matemática do governo insiste em me cobrar quase três paus de impostos, apesar de eu ter pago um monte todo mês durante o ano passado. O problema é que tenho duas fontes de renda: o INSS, que me contempla com a merreca da aposentadoria, e meu fundo de pensão que complementa meu salário. Mais de uma fonte de renda é sinônimo de castigo aos olhos do leão.

O mais interessante nisso tudo é a forma ‘diferenciada’ com que o felino fedido trata os contribuintes. Quando na ativa eu recebia todo fim de ano participação nos lucros e resultados, a popular PLR, e logo de cara já deixava de lembrança 27,5% de IRRF para o engrandecimento da pátria. Por outro lado, um empresário – digamos o Antonio Ermírio ou o Eike – recebe os dividendos após o fechamento do balanço. Tecnicamente PLR e dividendos são a mesma coisa, uma gratificação pelos lucros auferidos pela empresa, mas há aí duas diferenças: a) os dividendos são isentos de imposto de renda; b) a PLR era coisa de R$ 5 ou 6 mil, já os tais dividendos contam-se na faixa das centenas de milhares ou até mais. Essa aberração encontra respaldo na lei, mas quem é que faz as leis, mesmo?

Ao apagar das luzes de minha carreira bancária, foi criada uma linha de crédito voltada para pessoas físicas de alta renda, só para a galera da coluna social. De vez em quando um ou outro aparecia na coluna policial, mas isto é outra história, o povo tem memória curta, o cara virava ministro e tudo voltava a ter ares de normalidade. Pois bem: o cabra dizia quanto queria de empréstimo e tinha que dar em garantia imóveis quitados em seu nome, a chamada garantia real, em valor superior a 120% do empréstimo. Uma operação como outra qualquer.

Ocorre que fui designado para auditar contratos da espécie. Por dever de ofício não vou dar nomes aos bois, mas deixo um exemplo dos muitos que vi: o cidadão, empresário, comprovou documentalmente uma retirada mensal a título de pro-labore no valor de R$ 40 paus. Apresentou a escritura de alguns imóveis residenciais e comerciais e uma calhamaço de contratos de locação e recibos, o que elevou sua renda mensal para prosaicas R$ 62 pilas (eu estive em Santa Catarina semana passada e aprendi a falar assim). Com um cacife assim, não teve nenhuma dificuldade em obter um empréstimo de quase um milhão. Nada a reparar, tudo certo, tudo legal, dentro do que preceituam os normativos internos e as boas práticas bancárias.

O que de fato me chamou a atenção foi a declaração de renda do pobre coitado, que estava inserida no processo. A Receita Federal não viu um único centavo do camarada, porque a renda declarada dele estava na faixa de isenção. Ironicamente a relação de bens, em valores históricos (não atualizados monetariamente desde a aquisição), batia em R$ 1,38 milhão. Eu daria o Nobel de economia, mágica ou cara de pau para o carinha, mas aí me lembrei que já caí na malha fina porque minha empresa informou para a Receita Federal valores divergentes daqueles que me passou para fazer a declaração. Por que a RFB foi tão rigorosa comigo e abre as pernas para o empresariado? Será que a galera da fiscalização trabalha na base da omissão remunerada? Os sistemas da Receita não cruzam informações para identificar esse tipo de aberração?

Eu até não me importaria de pagar tanto imposto, se a escola aqui do lado não estivesse depredada, se o SUS não vivesse numa situação de greve permanente, que se manifesta na falta de médicos e materiais básicos, se houvesse UTI neonatal nos hospitais públicos, se eu tivesse a certeza de voltar inteiro pra casa ao sair à noite para ir à padaria. Também seria legal se eu não tivesse que correr o risco de ser atropelado porque as calçadas não existem ou estão cheias de lama.

A mesma lama que insiste em manchar o currículo da imensa maioria daquela classe que deveria olhar por nós.

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