SEM CULPA

Acabo de ler a excelente crônica ‘Coisas importantes’, publicada por Antônio Prata na Folha online de hoje. Trata de um assunto sobre o qual tenho me debruçado ultimamente, não porque esteja me preocupando, mas porque está preocupando os outros.

Em sua crônica o escritor relata sobre seu espírito dividido entre a obrigação de continuar a escrever seu livro (que já está atrasado segundo a editora) e o jogo Iran x Argélia. ‘Um olho no laptop e outro na TV’, até que a Arena da Baixada faz um golaço no Word. Findos os 90 minutos, e mesmo com o placar final de 0x0, nenhuma culpa, afinal era um jogo da Copa do Mundo, e “Copa não é, de forma alguma, uma situação normal. Copa é uma espécie de salvo-conduto para a vagabundagem”. E não é que ele tem razão?

Não estou muito interessado nesta copa, mas o texto me chamou a atenção a ponto de me levar a fazer um paralelo com minha aposentadoria. Daqui a alguns dias completo dois anos de vida desburocratizada e não poderia estar mais realizado profissionalmente. Sim, porque ficar até altas horas zapeando o Telecine ou algum canal de documentário, acordar entre nove e dez e meia – depende de vários fatores subjetivos -, ficar puto quando o telefone toca interrompendo o Bob Esponja, buscar o Lucas na escola ao meio-dia, levá-lo às terças e quintas ao inglês e futebol, estudar francês às segundas e quartas e ter meu salário creditado todo fim de mês não é para qualquer dinamarquês. Reclamar é pecado.

Meu amigo André, dono do empório próximo à minha casa, é meu maior desafeto. Quando Eliana vai lá ele pergunta pelo vagabundo que vive à custa do governo. Quando é minha vez, ele me pede para contar para todos da fila qual é a minha atividade produtiva. Morre de inveja, o inocente. Mas eu também sacaneio: já contei com riqueza de detalhes as pescarias que nunca fiz, dia desses acordei meio tarde e fui pra lá comprar pão, e ele me perguntou “que cara é essa?”. A cara era de recém-acordado, mas disse que estava meio chateado por ser tão explorado, “você vê, ontem acordei às onze, mal tive tempo de tomar um café sossegado e ler alguma folhas de jornal e já tive que sair para buscar o Lucas. Não tô tendo tempo pra nada!” Para quem abre o empório às seis e fecha às 23h, não sei como ele ainda insiste em ser meu amigo.

Mas, vamos aos fatos: comecei como engraxate, sendo alguns anos depois promovido a operador executivo de frete de feira. O carrinho eu mesmo fabriquei, utilizando madeira de uma embalagem de fogão, pregos e rolamentos. O tempo passa, o tempo voa, e aos 15 anos tive meu primeiro registro em carteira. Desde então foram 36 anos e dois meses de previdência social, com apenas sete meses de desemprego durante todo esse tempo. Caí na besteira de virar auditor da Caixa Econômica, viajei tanto que calculo ter mais horas de voo que urubu da terceira idade. Por obra do trabalho detonei alguns bandidos, fui ameaçado por outros, me decepcionei muito em alguns momentos, tive grandes alegrias em outros. Chegou um momento em que olhei para o espelho, sério feito um calango, e disse: chega, né?

Desde então tenho feito coisas inéditas, que eu já fazia antes mas agora sem obrigação de fazê-las, daí o ineditismo. Vocês deveriam experimentar porque, como disse meu amigo Marcão, ‘existe vida fora do trabalho’. Leio muito, escrevo um pouco, sou paitorista, estudo português, história, geografia e ciências com meu filho Lucas (matemática é praia da mãe, sou inimigo) quando dá na telha toco meus instrumentos, depois de amanhã concluo o quinto semestre de francês e beijo muito na boca. Ah, também bato minha bolinha e tipo duas vezes por semana dou uns mergulhos.

Voltando à crônica do Antônio Prata, lá pelas tantas ele diz: “A gente gasta um tempo enorme escrevendo livros, projetando casas, calculando logaritmos, plantando caquis: cada um concentrado em seu imenso umbigo, crente que de sua pequena tarefa depende o futuro da humanidade. Depois morre e já era.”

Eu fiz questão de aproveitar a primeira oportunidade que a lei me deu, simplesmente porque jamais pretendi deixar para me aposentar quando estivesse respirando por aparelhos. Quero continuar assim, viajando mas com a família, tocando sem precisar de plateia, brincando, estudando, provando para os menos atentos que ser ativo não envolve necessariamente trabalho remunerado, chefe chato e relógio de ponto. Pelo contrário, a vida aqui fora é bem mais serena e agradável e permite, dentre outras coisas, leituras diárias e prazerosas como a que tive hoje. A propósito, Antônio Prata, muito obrigado!

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2 respostas para SEM CULPA

  1. aramita disse:

    Eita Negao, não demora muito e serei sua companheira de jornada.
    Bjs

  2. Rogério Veloso disse:

    Eliana comentou há algum tempo que você estaria pensando em pedir o boné. Já tem uma data definida?
    Imagine ter o tempo que quiser para fazer aquilo que gosta ou deseja, ainda mais em se tratando de uma pessoa como você, com milhões de atividades!
    Você não vai querer outra vida. A possibilidade de arrependimento é zero.
    Bem-vinda ao clube!

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