MÃE

Faltavam poucos minutos para as três da tarde quando cheguei no hospital. O cansaço era algo exagerado, não parecia natural, mas considerei que o acúmulo de perrengues por aqueles dias fosse uma boa justificativa.

Encontrei minha mãe de certa forma diferente, sorria com vontade e fugia do hábito de pessimismo em relação à vida. Sorria. Meu cansaço parecia arrefecer frente ao estado de espírito dela. Fiz-lhe um carinho no cocuruto e me sentei na cadeira ao lado de seu leito, como que esperando surgir algum problema que exigisse de mim uma atitude. Iniciamos um papo sobre o passado, assunto preferido dela.

A verdade que ela imprimiu ao longo dos últimos anos levava a uma constatação incômoda: minha mãe não era feliz no presente, o que explicava aquele crônico saudosismo, um passado meio que idealizado na sua tão amada São Paulo, que teve que abandonar em 1975 e de que falava sempre em tom de tristeza e nostalgia. Nunca concordei que fosse uma maravilha aquela cidade que aos meus olhos se destacava mesmo por ser tão feia, mas não corrigi nem retruquei, estava gostoso acompanhar aquela espécie de digressão e seria no mínimo arrogante interrompê-la. Desta feita a narrativa era alegre e as lembranças da vida na Rua Jaguariúna, no Itaim-Bibi, em Osasco, na Moóca e em outros lugares fluíam de forma até divertida e seu espírito aspirava aquela atmosfera benfazeja que lhe trazia as boas lembranças e fazia esquecer um presente francamente rejeitado.

Conforme a noite chegava, dona Esther foi meio que murchando. Seu discurso jovial sobre sua terra deu lugar a comentários impacientes acerca do desconforto da cama e da ‘comida intragável’ do hospital. De repente ela me pergunta se eu estou cansado de aturar o mau humor dela, foi quando eu a abracei e colei meu rosto no dela e disse que estava tudo bem, que em breve ela se recuperaria e voltaríamos para casa, onde a vida voltaria ao normal. 

Ao dizer aquilo me veio certo mal-estar. Talvez por ter tido a consciência de que a tal vida ‘normal’ não era algo a ser por ela comemorado, ou então por intuir que ela jamais sairia viva daquele hospital. 

Algum tempo depois ela me pergunta se aquela camiseta jogada no chão tinha sido esquecida pelo Zezinho. Essa pergunta me assustou muito, porque não havia camiseta alguma no chão e o Zezinho era um dos meus amigos de infância, não o vejo há meio século. Minha mãe optou por se instalar naquela época. Em definitivo. Lá ela era feliz.

A confusão mental dela foi explicada pela queda de potássio e, principalmente, de sódio em seu organismo. A partir de então ela passou a se comportar de uma maneira que eu nunca tinha visto, alternando rebeldia com momentos de primeira infância. 

Entre uma e três da manhã ela dormiu um sono até profundo. Como havia vomitado algumas vezes a minha atenção estava redobrada, felizmente pude contar com a valentia do meu organismo que se recusou a sentir sono aquela noite. Passei um bom tempo olhando seu rosto, observando sua respiração, e um turbilhão de lembranças me passou por cabeça e espírito. Meus olhos marejaram e eu percebi naquele momento que estava perdendo minha mãe, ela estava perdendo aquela briga e parecia não querer mais lutar.

A caminho da casa dos velhos, com minha mãe já encaminhada para a UTI, um emaranhado de notas, pausas e colcheias voltou a povoar minha mente, como a continuação de um processo que vivenciei havia alguns dias e me pôs a dedilhar o volante do carro como se fosse um piano. Eu sabia que meu inconsciente tinha sido despertado para a composição de uma lembrança musicada de minha mãe, faltava botar essas intuições todas para fora. Foi um processo até rápido, alguns dias após o sepultamento dela eu consegui gravar a última nota. Parece que ficou à altura dela, ou pelo menos assim eu espero.

BALADA PARA MINHA MÃE

   

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7 respostas para MÃE

  1. Leandro Kdeira disse:

    Me emocionei com tudo, principalmente com a balada em homenagem a Dona Esther.
    Grande abraço meu amigo.

  2. Natanna Franco disse:

    Que composição linda! Amei Rogério. Da para sentir o seu sentimento em cada nota. Sua mãe com toda certeza está orgulhosa e honrada. Meus mais sinceros sentimentos.

  3. Natanna Moraes Franco disse:

    Olá Rogério!
    Que composição linda! Amei Rogério. Da para sentir o seu sentimento em cada nota. Sua mãe com toda certeza está orgulhosa e honrada. Meus mais sinceros sentimentos.

  4. Rogério disse:

    Natanna, minha linda, tudo bem? Quanto tempo, né? Obrigado pela delicadeza, grande beijo!

  5. Rogerio disse:

    Valeu, Lelê, grande abraço!

  6. Ana Carolina disse:

    Pai muito linda a musica você é um artista.Um dom lindo que Deus te deu .
    Minha vó com toda certeza merece essa homenagem !
    Te amo paizão!!

  7. Rogério Veloso disse:

    Também te amo, filha!

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