O PEQUENO DRAGÃO PRETO

Na infância meu irmão, 11 meses mais velho do que eu, fazia jús à alcunha de ‘grandão’. Alto, forte, atlético, ignorante, ninguém mexia com ele. Quanto a mim, aos 11 ou 12 anos, era um bostinha raquítico que gostava de Cecília Meireles e Rubem Braga. O problema é que eu vivia me metendo em encrenca e não podia contar com o apoio do meu irmão, que sempre dava razão para os outros.

O Grandão puxou à minha mãe e era branco leitoso, o que lhe dava tranquilidade para ser racista comigo e todos os vizinhos que ousavam carregar uma dose extra de melanina. Como se recusava a me defender, os branquelos ao redor me atazanavam com a certeza da impunidade. Mas eu reagia.

Não foram poucas as vezes em que me envolvi em brigas na rua, geralmente apanhava feito cachorro ladrão e me contentava em acertar uns tabefes inócuos na fuça dos infelizes, e assim corriam os dias no Jardim Santo Antônio, Osasco, São Paulo.

Passam-se os anos, mudamo-nos para Brasília, sosseguei meu facho e meu irmão preferiu continuar com os esportes, futebol à frente, o que me rendeu algum alívio. Já adolescentes, nossas diferenças agora se resumiam aos boletins escolares. No meio em que nos inserimos na capital federal, com meu primo à frente, prevalecia o gosto pelo conhecimento, pela cultura, pelas artes, em contraponto ao nojo à ditadura então reinante. 

Mas eu sosseguei o facho no velho estilo ‘pero no mucho’. Não raras vezes participei de manifestações de protesto pelas liberdades democráticas no campus da UnB, na época bem comuns mas nunca sem risco, assisti a peças de teatro com textos de Plínio Marcos e Leilah Assumpção, muitas vezes tivemos que sair correndo porque as ‘autoridades’ haviam chegado para nos punir pela ousadia. Perdi um violão numa memorável noite em que tive que fugir dos home porque estávamos tocando Vandré. Delícia de tempo!

O tempo corria ligeiro e de repente me vi entrando para o serviço público, via concurso de âmbito nacional. Foi quando saí de casa, aos 20 anos, me mudei para Goiânia porque não alcancei classificação para ser lotado em Brasília. Vi boa chance de fazer carreira em uma empresa pública celetista vinculada ao um ministério (Ministério do Interior, Mário Andreazza, aquele), que me pôs para atender a um público identificado como povão, e eu gostava daquilo. Sentia certa repulsa a tudo que chamavam elite e me sentia especialmente feliz ante a consciência, ao final do expediente, de que tinha conseguido ajudar alguém mais lascado do que eu.

Mais algum tempo a empresa em que eu trabalhava foi extinta por uma maquinação ministerial e, de repente, me vi na condição de bancário da Caixa Econômica, que assumiu as funções sociais, o quadro funcional e o riquíssimo patrimônio do BNH. Para mim, em termos de trabalho, nada mudou. O que mudou foi o tratamento dado a mim e meus colegas. De repente, passamos a ser tratados como funcionários de segunda categoria, inclusive pelos teoricamente iguais na Caixa, que não perdiam uma oportunidade de soltar um comentário jocoso acerca dos novos coleguinhas. Tivemos que trabalhar em dobro para provar que produzíamos a metade e que nada tínhamos a ver com o que se passava nos gabinetes.

Meu lado brigão meio que aflorou, despertou, principalmente a partir do momento em que minhas filhas passaram a ser discriminadas pelo plano de saúde. Por serem adotivas, num primeiro momento foram consideradas ‘não elegíveis’ como minhas dependentes. Conversei, briguei com os burocratas baba-ovo de plantão, recorri à imprensa, procurei o então Juizado de Menores, briguei com o juiz, soltei os cachorros. Na época eu era mais corajoso do que hoje, no que dependesse da franga atual talvez as coisas tivessem se perpetuado como estavam. Minha tática era causar constrangimentos, o que chegou à alta direção de Brasília que, incomodada, promoveu uma reunião. Só que eu compareci. De repente o neguinho que brigava na rua em Osasco, sabendo que iria apanhar, ressurgiu das cinzas e falou coisas que o bom senso não recomendaria. Botei os caras na condição de fascistoides, encontrei respaldo em alguns colegas que criaram coragem e também se posicionaram, até que mudou a direção da empresa e colocaram no topo algo mais parecido com um ser humano, que determinou a extinção da discriminação. Não me lembro bem, mas acho que rolou um chopp.

Éramos excepcionalmente competentes naquilo que fazíamos e dominávamos, ninguém desejava trabalhar na nossa tão complexa área. Então, demorou, mas conseguimos nos impor frente aos demais, e algum tempo depois nossa origem não era mais lembrada.

No BNH tínhamos uma vida mais tranquila quando o assunto eram as questões de cunho trabalhista. Uma vez na Caixa, fomos apresentados a uma novidade: campanha salarial em setembro, assembleias, rodadas de negociação e – sempre – ao final a greve. O clube da Caixa era nosso quartel-general, ponto de encontro e fonte de informações nesses períodos, e eu achei legal demais a união da galera em torno de um objetivo comum. Participei de passeatas, piquetes, dávamos entrevistas à imprensa (que sempre se postou ao nosso lado), contatávamos políticos influentes.

Não era exatamente uma situação confortável, a direção da empresa jogava pesado com desinformação (ou alguém aí acha que fake news é coisa recente?), ameaças de punições, corte de ponto, exoneração dos cargos comissionados. E nós ali, seguindo em frente sem mostrar o medo que de fato sentíamos, mas sabíamos que qualquer capitulação botaria tudo a perder. Fizemos greves históricas que duraram semanas inteiras. Quando a vitória vinha, mesmo que parcial, o sentimento era do mais puro júbilo e orgulho por termos lutado tanto e tão honestamente, enfrentando um adversário gigantesco e poderoso. Ao longo de décadas, essa era nossa rotina quando setembro se avizinhava. Medo sim, covardia jamais!

Hoje, na minha poltrona de aposentado, vez por outra me ponho a relembrar as brigas de rua, os embates contra a discriminação contra minhas filhas, a luta para ser visto como um igual frente aos colegas, as batalhas diárias durante as campanhas salariais, e me vejo como um atrevidinho digno de uns cascudos, que sabia que podia levar boas porradas mas intuía que eventual dor moral por fugir da briga seria bem mais sofrida. 

Essas reminiscências foram meio que provocadas por um vizinho, que veio comentar comigo no elevador que o governo brasileiro estava brincando com fogo, afinal o grande irmão do norte é a maior potência do planeta e não custava nada ceder para não ter briga.

Respondi candidamente que concordava com o governo brasileiro, porque cair de quatro não deve jamais compor o roteiro. Sim, candidamente, até meio que de forma casual. A minha vontade mesmo era falar um monte pra ele, principalmente por se tratar de um advogado. Fiquei curioso sobre como costuma se portar frente a um poderosão no tribunal.

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