Como sempre faço nos finais de tarde, fui ao colégio buscar o moleque. Essa coisa de ensino médio tá pesada pra ele, tipo das 07 às 18, mas ele não reclama. Chegamos e encontramos dona Eliana digitando algo, pensei que fosse a preparação para um curso que vem fazendo mas na verdade ela estava soltando os bichos. Produziu uma teteia de texto no melhor estilo desabafo, gostei, perguntei se podia publicar de carona por aqui e ela deixou. Então, lá vai (diz aí se não sou um cara bem casado):
==========o=========
Hoje acordei mais pensativa que de costume. O paradoxo da minha consciência retinindo no meu cérebro: como ser leve, otimista e feliz nesses tempos de cólera e insanidade? Minha alma sensível se contorce para caber nesse mundo doido e doído.
Caminhando alegremente pelo parque, ia apreciando as pessoas e seus animais, os pássaros, as árvores e arbustos. Encantando-me com a beleza das flores – quantas no chão! -, na incrível sucessão de ciclos da natureza. Mais adiante, um lago quase seco me trouxe de volta à nossa triste realidade: como o cerrado sofre na seca! Mas a visão daquele lago já quase sem água me trouxe à lembrança as cenas do jornal de ontem, que exibia cenas terríveis de matas e florestas sendo consumidas pelo fogo.
Não é só o cerrado que sofre. Todos os biomas que compõem este nosso país e este planeta tão rico têm sofrido miseravelmente e, junto com eles, esse tal de “homo sapiens”, esse mesmo que provoca o seu próprio sofrimento.
Toda a natureza grita; os pobres e desvalidos gritam; os tangidos pela fome e pela seca gritam; os povos indígenas e originários gritam; o planeta Terra grita. Mas o único grito que se sobressai é o grito dos poderosos de plantão, cuja ganância trabalha incansavelmente para nutrir mais um conflito que só a eles interessa.
Enquanto isso, a natureza vai sendo impiedosamente devastada e destruída e centenas de milhares de seres humanos morrendo todos os dias de fome. DE FOME! Numa época de fartura e excesso para muitos, milhões não têm o que comer! Também no Brasil, que bate recordes todos os anos de colheita de alimentos, a fome grassa! A criatura compassiva que habita em mim não compreende que se gastem bilhões com tentativas de se mandarem expedições a Marte enquanto não temos sequer o mínimo para todos no nosso planeta.
A ambição desmedida também envenena nossa comida, nos tornando mais doentes. Mais doentes, lucra ainda mais a indústria farmacêutica que não se interessa em promover a cura, mas em perpetuar a doença e a dependência dos remédios.
A mim, parece óbvio demais que estamos numa época de selvageria programada e incentivada e não conseguimos reagir! Assistimos passivamente nosso país sendo engolfado por uma espécie de surto de insanidade coletiva, que leva as pessoas a simplesmente ignorar as temeridades que estão sendo praticadas por esse governo destrambelhado e mal intencionado!
Agora, o tom normal é o do ódio, do deboche, do achincalhamento, da afronta à ciência e a tudo o que há de civilizado. A família em primeiro lugar, mas a família de quem? Os valores tradicionais têm que ser mantidos. Os valores de quem? As pessoas de bem precisam de armas para se defenderem. Pessoas de bem ou pessoas “com bens”? Pela vontade dessa gente de “bem” os negros voltariam para a senzala. O amor entre duas pessoas do mesmo sexo não pode, mas a tortura pode! A hipocrisia é a nova normalidade. A maldade é a nova lei. Terrivelmente Cristão, não é mesmo?
Triste, deprimente o meu desabafo? Sim, mas talvez seja meu modo de não ser engolida por essa máquina de fazer malucos que se tornou nossa nação e grande parte de nosso planeta.
Minha veia de artista em que pulsa o amor pela arte clássica gostaria de só expressar coisas belas, harmoniosas, coloridas, mas também o artista precisa expor as mazelas do nosso mundo. Os grandes mestres da pintura conseguem colocar nas suas obras toda a tristeza, revolta e frustração em redor. Mas hoje eu, simples mortal, não consigo!
Eliana de Almeida A. Veloso
Goiânia, 14/08/2019
Eliana, além de exímia pintora de aquarelas, também faz artes com as palavras! Acho que o Rogério vai ter que começar a dividir esse espaço mais vezes com você! Fui tocada por sua crônica!
Obrigada Simone. Fico meio envergonhada de expor meus escritos, pois ser irmã de uma escritora maravilhosa como você e esposa de um cronista excelente é muita responsabilidade.