SELVAGEM

Ouvi pela primeira vez a expressão ‘esquerda caviar’ da boca boquirrota do tal de Constantino da Veja, aquela figura cujo cabelo ensebado me leva a concluir que os piolhos ali residentes devem enfrentar graves problemas de colesterol. Ele inclui nesse segmento social as pessoas que, direta ou indiretamente, por meio de declarações ou ações, de alguma forma defenderam ou ainda defendem a liberdade e a justiça, justiça social inclusa, mas que não ostentam sinais exteriores de pobreza ou miséria. Como se sabe, quem é de esquerda ou contra a direita, no mínimo tem a obrigação de passar fome.

Depois a coisa meio que se disseminou entre a autointitulada direita brasileira, culminando com a eleição por aclamação do Chico Buarque como representante-mor da esquerda caviar. O motivo? Ele mora em Paris e, aparentemente, resolveu se desligar das questões político-sociais brasileiras. Não o condeno. Se tivesse a grana que ele tem – conquistada com muito trabalho, diga-se – é bem provável que eu também estaria morando ali na região da Place de l’Etoile. Chega um momento na vida em que remar contra a maré cansa.

O Chico, porém, parece não ligar muito para o que pensam dele:

Analisando bem, acho que me enquadro nessa sub-raça definida pelos playboys da Paulista, porque geralmente me dá nojo o que os endinheirados fazem para ficarem mais endinheirados. Nem é necessário comparar a qualidade e os preços de nossos carros e eletro-eletrônicos com outros países, né? Até porque qualquer conglomerado de comunicação do país afirma sem medo de errar que o problema é a ‘alta carga tributária’. Se as Capitanias Hereditárias afirmam, então deve ser verdade. 

Mas vamos a um fato ocorrido semana passada: um amigo me pediu para fazer a instalação do pacote Microsoft Office em seu notebook. Uma vez comprado o programa, fui até sua casa para fazer a instalação e configurações. Foi aí que percebi o inusitado: há pouco mais de um ano comprei a versão 2010 (Home and Student, ou seja, não profissional) do aplicativo, que inclui o Word, Excel, PowerPoint, One Note e Publisher, cujo CD permitia a instalação em até três máquinas ao preço de cerca de R$ 240,00. A versão comprada pelo amigo é a 2013, cujas diferenças em relação ao 2010 ainda não se fizeram notar, a não ser pelo fato de conter somente o Word, o Excel e o PowerPoint, disponíveis para instalação em uma única máquina. O preço? O mesmo que paguei pelo outro. Pausa para a cara de otário.

A isto dá-se o nome clássico de capitalismo selvagem. Para quem foi bancário como eu, é fácil fazer uma análise crítica sobre o assunto, já que os bancos são os maiores pilares desse sistema que paga 6% ao ano pelo seu dindim na poupança e cobra 8 ou 9% ao mês pelo empréstimo. Mas não se iludam: não é de bom tom falar mal disso, sob pena de virar a bola da vez da isenta imprensa brasileira.

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SEM CULPA

Acabo de ler a excelente crônica ‘Coisas importantes’, publicada por Antônio Prata na Folha online de hoje. Trata de um assunto sobre o qual tenho me debruçado ultimamente, não porque esteja me preocupando, mas porque está preocupando os outros.

Em sua crônica o escritor relata sobre seu espírito dividido entre a obrigação de continuar a escrever seu livro (que já está atrasado segundo a editora) e o jogo Iran x Argélia. ‘Um olho no laptop e outro na TV’, até que a Arena da Baixada faz um golaço no Word. Findos os 90 minutos, e mesmo com o placar final de 0x0, nenhuma culpa, afinal era um jogo da Copa do Mundo, e “Copa não é, de forma alguma, uma situação normal. Copa é uma espécie de salvo-conduto para a vagabundagem”. E não é que ele tem razão?

Não estou muito interessado nesta copa, mas o texto me chamou a atenção a ponto de me levar a fazer um paralelo com minha aposentadoria. Daqui a alguns dias completo dois anos de vida desburocratizada e não poderia estar mais realizado profissionalmente. Sim, porque ficar até altas horas zapeando o Telecine ou algum canal de documentário, acordar entre nove e dez e meia – depende de vários fatores subjetivos -, ficar puto quando o telefone toca interrompendo o Bob Esponja, buscar o Lucas na escola ao meio-dia, levá-lo às terças e quintas ao inglês e futebol, estudar francês às segundas e quartas e ter meu salário creditado todo fim de mês não é para qualquer dinamarquês. Reclamar é pecado.

Meu amigo André, dono do empório próximo à minha casa, é meu maior desafeto. Quando Eliana vai lá ele pergunta pelo vagabundo que vive à custa do governo. Quando é minha vez, ele me pede para contar para todos da fila qual é a minha atividade produtiva. Morre de inveja, o inocente. Mas eu também sacaneio: já contei com riqueza de detalhes as pescarias que nunca fiz, dia desses acordei meio tarde e fui pra lá comprar pão, e ele me perguntou “que cara é essa?”. A cara era de recém-acordado, mas disse que estava meio chateado por ser tão explorado, “você vê, ontem acordei às onze, mal tive tempo de tomar um café sossegado e ler alguma folhas de jornal e já tive que sair para buscar o Lucas. Não tô tendo tempo pra nada!” Para quem abre o empório às seis e fecha às 23h, não sei como ele ainda insiste em ser meu amigo.

Mas, vamos aos fatos: comecei como engraxate, sendo alguns anos depois promovido a operador executivo de frete de feira. O carrinho eu mesmo fabriquei, utilizando madeira de uma embalagem de fogão, pregos e rolamentos. O tempo passa, o tempo voa, e aos 15 anos tive meu primeiro registro em carteira. Desde então foram 36 anos e dois meses de previdência social, com apenas sete meses de desemprego durante todo esse tempo. Caí na besteira de virar auditor da Caixa Econômica, viajei tanto que calculo ter mais horas de voo que urubu da terceira idade. Por obra do trabalho detonei alguns bandidos, fui ameaçado por outros, me decepcionei muito em alguns momentos, tive grandes alegrias em outros. Chegou um momento em que olhei para o espelho, sério feito um calango, e disse: chega, né?

Desde então tenho feito coisas inéditas, que eu já fazia antes mas agora sem obrigação de fazê-las, daí o ineditismo. Vocês deveriam experimentar porque, como disse meu amigo Marcão, ‘existe vida fora do trabalho’. Leio muito, escrevo um pouco, sou paitorista, estudo português, história, geografia e ciências com meu filho Lucas (matemática é praia da mãe, sou inimigo) quando dá na telha toco meus instrumentos, depois de amanhã concluo o quinto semestre de francês e beijo muito na boca. Ah, também bato minha bolinha e tipo duas vezes por semana dou uns mergulhos.

Voltando à crônica do Antônio Prata, lá pelas tantas ele diz: “A gente gasta um tempo enorme escrevendo livros, projetando casas, calculando logaritmos, plantando caquis: cada um concentrado em seu imenso umbigo, crente que de sua pequena tarefa depende o futuro da humanidade. Depois morre e já era.”

Eu fiz questão de aproveitar a primeira oportunidade que a lei me deu, simplesmente porque jamais pretendi deixar para me aposentar quando estivesse respirando por aparelhos. Quero continuar assim, viajando mas com a família, tocando sem precisar de plateia, brincando, estudando, provando para os menos atentos que ser ativo não envolve necessariamente trabalho remunerado, chefe chato e relógio de ponto. Pelo contrário, a vida aqui fora é bem mais serena e agradável e permite, dentre outras coisas, leituras diárias e prazerosas como a que tive hoje. A propósito, Antônio Prata, muito obrigado!

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GZUIS, ME LEVA!

A dinâmica do mundo é algo a ser exaltado, principalmente quando os fatos ocorrem no Brasil. Eu cheguei a imaginar que teria atingido o ápice do testemunho de bobagens e molecagens ao ouvir as declarações daquele secretário de turismo do Rio de Janeiro, que justificou a não realização de obras de acessibilidade (dentre outras) porque as pessoas com deficiência não eram o público-alvo da copa do mundo. Duvida que alguém tenha falado isso? Então, escuta:

Anteontem recebi um telefonema que pôs por terra minha impressão otimista de que tínhamos chegado ao fundo do poço. Do outro lado da linha estava minha amiga Aramita, que é mãe do Lucas, cego de nascença. Lucas deve ter hoje 20 ou 21 anos, e o conheço desde quando era um garotinho de cinco ou seis, quando fiquei admirado ao vê-lo cuidar do jardim de casa. Depois fiquei bestificado ao testemunhar o moleque detonando os adversários no Mortal Combat e outros videogames. A partir daí passei a achar banal que ele fosse torcedor doente do Goiás, grande frequentador do Serra Dourada, que tivesse passado no vestibular da Universidade Federal de Goiás para o curso de Ciências da Computação, colado grau, passado no concurso para o Ministério Público e resolvido cursar Direito atualmente. Desde sempre é assistido pelo mesmíssimo oftalmologista.

Trabalhei com Aramita por mais de uma década, e o tempo se encarregou de me nomear uma espécie de procurador do Lucas. Redigi um monte de petições, cartas, ofícios, protestos, xingamentos, sempre que havia alguma agressão ao moleque, na forma de discriminação ou negativa de direitos. Então, ela se acostumou – e parece que gosta – a ver minha jugular inchada de raiva, e aí se deu ao trabalho de me ligar para relatar o mais recente ocorrido.

Como o Lucas é tarado por futebol, é claro que quis assistir a um ou mais jogos da copa, de preferência do Brasil. A Fifa exige um laudo médico como prova de deficiência (não sei se é oferecido desconto ou a exigência serve simplesmente para alocação de cadeiras), então Aramita ligou para o senhor doutor para solicitar o laudo. Passado algum tempo, ligou para saber se já estava pronto. A secretária do médico disse que ele queria falar com ela.

Para sua grande surpresa, o médico disse que não poderia fornecer o laudo, porque não faz sentido uma pessoa cega querer assistir a uma partida de futebol. Aramita argumentou que o carinha adora futebol, frequenta estádios desde pequeno e, talvez para se livrar da insistência dela, o médico emitiu um laudo em que atesta que o Lucas é cego. Ponto. Também não precisava de mais.

Nós, brasileiros, já estamos acostumados com semi-analfabetos idiotas ocupando cargos de destaque nos vários níveis de governo, bastando para a nomeação a filiação ao partido certo. Pode ser o caso do secretário de turismo do Rio de Janeiro, vez que em pouquíssimos minutos ele assinou verbalmente o próprio atestado de pobreza cultural e espiritual. 

Mas eu fiquei matutando: como é possível um médico acompanhar seu paciente por duas décadas e não conhecê-lo? Mais do que isso, como pode um oftalmologista decretar a morte social das pessoas de quem, em tese, cuida? Seria um atestado de incompetência? De desumanidade?

O fato é que o cara é considerado um bambambam em sua área, mas parece denunciar o próprio paradoxo, por não ter o saudável hábito de enxergar o mundo à sua volta. Estuda muito sobre íris, glaucoma, pupila, papila, córnea, mas nada sabe sobre o ser humano. Ele é muito pior do que aquele secretário boçal.

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ESTUPRA, MAS NÃO MATA!

 “O brasileiro é cordial”. Engraçado que sempre que lia ou ouvia isto, me vinha à cabeça como contrapeso a palavra palerma. Agora, com a tomada do poder pela Fifa, entendi finalmente o porquê dessa cisma.

A tal entidade mafiosa com ramificações no mundo todo já chegou fincando bandeira, e a primeira providência foi detonar nossa segurança jurídica. Impôs a morte por asfixia do Código de Defesa do Consumidor, enterrou ainda vivo o Estatuto do Torcedor e, de quebra, deu uma mijada panorâmica na Constituição. Tudo com as solícitas bênçãos dos nossos gloriosos três poderes, cada um na sua especialidade.

Andei fuçando no site da Fifa criado especificamente para o torneio de futebol envolvendo seleções nacionais, que se realizará daqui a alguns dias no Brasil (eu poderia ter escrito Copa do Mundo, mas parece que é marca registrada pela máfia e não quero ter que pagar royalties), e lá encontrei um documento intitulado “Informações disponíveis referentes a assentos para Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 TM” – esse TM’ me deu a certeza de que dom Joseph Corleone Blatter de fato registrou a marca – e lá encontrei uma coleção de pérolas. As mais brilhantes:

  • O torcedor que adquire um ingresso não tem o direito de escolher o assento, apesar de a Fifa ter exigido que todos fossem numerados. A própria entidade atribuirá um assento específico para o otário torcedor, após a conclusão da compra.
  • Isto significa que famílias ou grupos que tenham comprado ingressos mesmo conjuntamente correm o risco de serem separados, sem direito a mimimi. A Fifa diz que assentos para ingressos requeridos em uma mesma solicitação serão, sempre que possível, localizados um ao lado do outro ou em duas ou mais fileiras consecutivas.
  • Então, você que vai com a esposa e os três catarrentos de 4, 6 e 8 anos, saiba que pode ficar cada um num hemisfério de um estádio lotado. Ainda não li nada sobre qualquer manifestação do judiciário quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente, mais especificamente no tocante à proteção à criança e abandono (involuntário) de incapaz.

Vale lembrar que o mesmo documento do site da Fifa diz que “não é possível solicitar a troca do assento alocado para você”, “o cancelamento e devolução do ingresso não podem ser justificados pela localização do assento” e “por favor, jamais tenha a expectativa de que assentos alocados a diferentes solicitações de ingressos sejam localizados adjacentes uns aos outros”. Uma variação simpática e criativa para o consagrado foda-se.

A Lei Geral da Copa se sobrepõe à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/1996) ao determinar férias escolares na rede pública no mesmo período do torneio, em que pese o fato de que em nenhuma cidade-sede haverá jogos todos os dias. Isto redundará em prejuízo do cumprimento mínimo de 200 dias letivos.

Como a mardita tem o poder de revogar, dentre outras coisas, o Estatuto do Torcedor, algumas das conquistas suadas foram simplesmente jogadas para escanteio, tudo em nome da vocação mercantilista da Fifa e da cumplicidade mezzo cínica mezzo criminosa dos Três Poderes.

Para ficar em poucos exemplos, os prejuízos civis da sociedade se mostram por meio da revogação da proibição da venda e consumo de bebidas alcoólicas nos estádios (cabe um adendo: só pode a cerveja patrocinadora; as demais marcas e bebidas continuam proibidas), da não-responsabilização pela segurança do torcedor que a lei revogada atribuía à entidade detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, da inexigibilidade de estacionamento, meio de transporte, ainda que oneroso, para condução de idosos, crianças e pessoas com deficiência aos estádios, da não proibição de impor preços excessivos ou aumentar, sem justa causa, os preços dos produtos alimentícios comercializados nos locais dos jogos, etc, tudo antes previsto no Estatuto do Torcedor.

E nem falei da roubalheira nas obras, né? Pelo menos proibiram a vuvuzela. Ou caxirola, seja lá o que isso signifique.

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O MOÇO VÉIO

Pode até ser que eu acabe levando porrada qualquer dia desses, mas tem coisas que não aguento ver e ficar calado. Falta de civilidade é uma delas. Já há muito tempo venho lutando contra moinhos de vento ambulantes, que teimam em desrespeitar o direito e o espaço alheios na hora de estacionar. Principalmente nos supermercados e shoppings, o que tem de carro irregularmente estacionado em vagas reservadas a idosos e a pessoas com dificuldades de locomoção é uma grandeza. Se pego no pulo chamo a atenção, normalmente com menos finesse do que eventualmente determinem possíveis regras sociais.

Mas teve um episódio em que apelei para o nonsense, e teve um efeito ótimo. Sábado à tarde, estacionamento do shopping aqui perto de casa, após passar um porrão de tempo procurando uma vaga eu caminho em direção à entrada principal. Eis que noto um casal num carrão bonito, que manobrava para estacionar numa vaga exclusiva para idosos. Tudo certo, não fosse o fato de que o carinha ao volante não tinha 25 anos, pouca coisa a mais do que a mocinha ao seu lado. Resolvi falar a língua deles:

– Pô, véio, tu estacionou na vaga dos véio, véio! O estacionamento tá lotadão, se chegar um véio procurando uma vaga dos véio não vai encontrar, porque tu tá usando a vaga dos véio. Faz isso não, véio! Quando tu ficar véio tu usa a vaga dos véio, mas por enquanto deixa as vagas dos véio pros véio, véio!

É bom destacar que o carinha demonstrou reconhecer que fez caca, mas ficou de cara amarrada porque a possível namorada estava chorando de rir. Ligou novamente o motor e saiu a procurar uma vaga para chamar de sua.

Ainda não me chamaram de inspetor de quarteirão depois que me aposentei, e devo dizer que ficarei assaz puto se ou quando isto acontecer. Não pela alcunha em si, mas pela limitação que ela impõe. Inspetor de quarteirão é coisa para quem vestiu pijama; eu sou inspetor da cidade onde vivo, dos aeroportos que tolero, do supermercado e do banco que ajudo a enriquecer, dos hotéis onde me hospedo e dos prédios que frequento, sejam públicos ou não. Estou juntando umas fotos do monte de crateras que o merda do prefeito atual transformou a cidade de Goiânia, e em breve devo fazer algumas considerações neste cafofo.

Por enquanto vou me divertindo tirando fotos pornográficas como as abaixo:

Uma esquina aprazível para um cadeirante ou carrinho de bebê: um Mitsubishi estacionado em curva, para dar cobertura a um Sandero, que cismou de avançar sobre a rampa na calçada.

Uma esquina aprazível para um cadeirante ou carrinho de bebê: um Mitsubishi estacionado em curva, para dar cobertura a um Sandero que cismou de avançar sobre a rampa na calçada. O poste logo ali é cortesia da prefeitura.

Preferido por 10 entre 10 madames, esta não menos perua foi flagrada estacionada em frente a uma agência do Bradesco, lindamente torta sobre a vaga para cadeirantes. Nem tentem me convencer que se tratava efetivamente de uma pessoa com deficiência; a forma com que o carro foi estacionado denuncia a vergonha alheia.

Preferido por 10 entre 10 madames, esta não menos perua foi flagrada estacionada em frente a uma agência do Bradesco, lindamente torta sobre a vaga para cadeirantes. Nem tentem me convencer que se tratava efetivamente de uma pessoa com deficiência; a forma com que o carro foi estacionado denuncia a vergonha alheia.

Mas eu me diverti mesmo foi quando meu mano velho Billy Saga se juntou a uma turma, que se intitula Coletivo Labuta, e juntos trataram de responder com irreverência e constrangimento a agressão diária que sofrem, agressão esta que não existiria se houvesse um mínimo de respeito humano, senso de vida em coletividade e amor fraterno. A questão é que, mesmo com os avanços que se fazem notar, ainda há muitas barreiras arquitetônicas e culturais a transpor, como o vídeo mostra. Daí a validade da atitude tomada pela turma, em pleno carnaval de 2014:

A única coisa que me aborreceu foi não ter sido convidado.

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BRINQUEDO NOVO

Além de considerar democratas e republicanos farinha do mesmo saco, trago mais alguns detalhes que me colocam meio à parte da cultura norte-americana. Não gostar de moedas e torcer o nariz para câmbio automático são os dois que mais se sobressaem. O câmbio é porque não gosto mesmo, mas as moedas por razões práticas: enquanto insisti em mantê-las na carteira tive que conviver com cartões de crédito quebrados ou danificados. Então, já há algum tempo cultivo o hábito de regularmente esvaziar a carteira e os bolsos, jogando as moedas numa gaveta. Quem se dá bem com essa brincadeira é o Lucas porque, quando o montinho justifica uma visita à mercearia, que é nossa ‘casa de câmbio’, saímos de lá com algumas notas que vão direto para a carteira do carinha. Semana passada embolsou R$ 80,00.

Até que eu consiga, finalmente, convencê-lo de que não faz parte de minhas obrigações de pai pagar a conta do pipoqueiro, a grana vai se multiplicando na carteira dele. Acho que não preciso me preocupar com a cisma de estar criando um mão de vaca, porque ele já utilizou a própria fortuna para presentear os primos com carrinhos de controle remoto. Então, tá valendo.

Daqui a exatos oito dias é aniversário do moleque, e anteontem ele resolveu se dar um presente, cujo nome eu não sei mas é essa coisa aí da foto:
Trem esquisito

A minha preocupação agora é conseguir descrever o troço para a Ju e demais amigos deficientes visuais. Mas, lá vai: pensa numa geringonça que lembra dois skates sobre hastes metálicas que se unem na ponta por um guidão de patinete, uma rodinha na frente e duas atrás. Pronto, é isso. E é rapidinho que só:

Quando ninguém estiver olhando vou dar uma voltinha nessa coisa. Parece divertido.

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E TOME MULTA

 

Parece que a galera da gravata fica mais gulosa quando em época de eleição. Paradoxalmente é também a época em que fica mais fácil abrir o cofre e cumprir pelo menos uma parte daquilo que foi prometido há três anos e meio. É bonito de se ver o carinho com que cuidam da nossa segurança, iluminando a rodovia no perímetro urbano. Tapar os buracos das ruas e querer mais policiamento já é pedir demais, mas é emocionante a expectativa de termos iluminação na BR qualquer dia desses.

A gente entende que fazer essas graças pra mundiça votante custa dinheiro, então eles precisam aumentar a arrecadação. Só que, não raro, exageram. Então, nós, os mortais, temos que redobrar a paciência porque não vai adiantar muito ter pressa para chegar em casa antes da blitz. Em outubro de 2008, por acaso ano eleitoral, Eliana foi contemplada com uma multa de trânsito. Segundo constava do documento da AGETOP, que vem a ser a Agência Goiana de Transportes e Obras, ela teria ultrapassado a velocidade máxima permitida para o local onde foi flagrada. O detalhe é que o carro dela na época era um Renault Clio, e o veículo fotografado e constante da multa era uma ambulância Peugeot.

  Agetoptop_Clio

Os homens lá são muito ciosos do seu trabalho, por isso não aceitam contato por telefone, internet nem sinal de fumaça. A madame teve que sair em horário de trabalho para se dirigir até aquele bairro conhecido como Cu do Judas, munida de sua documentação e dar entrada na contestação do auto de infração. Mais ou menos uns 45 dias depois recebeu a resposta, em que eles, de forma magnânima, acharam por bem dar provimento às suas alegações e arquivar o processo.

Eis que, há um mês (só pra lembrar, estamos em ano eleitoral), a madame é novamente contemplada com um auto de infração:

Multa Sandero

Desta feita seu pecadilho foi transitar pela faixa exclusiva para ônibus. Ela levava o Lucas para o confessionário da Catedral Metropolitana de Goiânia, uma das últimas etapas do processo de primeira eucaristia do moleque. Ocorre que, conforme é possível perceber pelo mapa abaixo, não há como entrar no espaço dedicado ao estacionamento da Catedral sem ‘invadir’ a primeira faixa da direita, o que me leva a imaginar o que as cabeças pensantes da SMT-Secretaria Municipal de Trânsito, Transporte e Mobilidade esperam de alguém que precisa estacionar na Catedral.

  Catedral
Pra ficar mais didático: Eliana se locomovia de leste para oeste pela Rua 10. A Catedral Metropolitana de Goiânia é a
edificação que ocupa todo o quarteirão após a confluência com a Rua 20, e a entrada do estacionamento fica logo após o cruzamento. Eliana disse que tentou parar o carro na faixa central e carrega-lo nas costas até o estacionamento, mas o tanque estava cheio e ela não aguentou o peso.

Estive no local anteontem e fiz algumas fotos:

Entrada estacionamento blog
Ponto de entrada do estacionamento da Catedral

Canhão ruas 10 e 20
Cruzamento entre as ruas 10 e 20, com destaque para o canhão fotográfico

Mesmo demonstrando que não havia nenhuma proibição de entrada no estacionamento da Catedral, e que não havia outro meio para tanto senão o de invadir por alguns metros a tal faixa exclusiva para ônibus, a defesa de Eliana não teve provimento e ela terá que ajudar na campanha pagar a multa estipulada pelo poder público. O mais pitoresco nisso tudo, tirando o fato de que foi a própria SMT quem me disse, há uns dois anos por email, que nada pode fazer quando um fdp qualquer utiliza indevidamente uma vaga exclusiva para pessoa com deficiência ou idoso no supermercado ou shopping, foi o fato de que, ao dedicar 15 minutos de meu precioso tempo de aposentado para contar veículos, descobri que, para cada 358 carros, motos e caminhonetes que transitaram no local fatídico, passou em média UM ônibus, todo garboso e lotado, na sua faixa exclusiva. Pode até parecer implicância minha, mas há um certo cheirinho de estagiário fazendo trabalho de engenheiro no trânsito de Goiânia.

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VIAJANDÃO – O INÍCIO

Eu me aposentei há cerca de dois anos, ou 700 sábados, no cargo de auditor de um grande banco. Comecei como inspetor e, em síntese, meu trabalho era verificar a regularidade e correção do trabalho dos colegas, o que me fazia a mais potencialmente amada das criaturas. Pelo menos de início o impacto era ruim, mas depois a galera percebia que minha praia não era ferrar ninguém, a não ser que merecesse, porque nunca dei mole pra gente desonesta. Não raro deixei amigos por onde passei.

Meu início na carreira de inspetor se deu em 1989 (é, eu sou praticamente um neanderthal), após passar pelas fases de avaliação escrita e psico-comportamental. O passo seguinte seria o trabalho em campo, igualmente eliminatório, que seria feito sob supervisão de um inspetor que já se encontrava numa agência.

Não conhecia pessoalmente Antônio Pedro, apesar de morarmos na mesma cidade. A agência para onde me desloquei ficava no município de São Miguel do Araguaia/GO, distante quase 500 km de Goiânia. Chacoalhei a noite toda num busão que me dava a impressão de soltar uma peça a cada meia hora, até que aportei no hotel indicado, já dia claro, a tempo de encarar o café da manhã. Encontrei meu supervisor na sala do café, nos apresentamos e iniciamos, ali, uma grande amizade que perdura até hoje.

Os exames e testes eram meticulosos, mas Antônio Pedro fazia questão de me deixar a par de todos os detalhes. Como disse, o trabalho era prático, ou seja, estava sendo feita de fato uma inspeção na agência, e eu ali de sapo, acompanhando e executando em conjunto, para pegar a prática necessária para num futuro breve alçar voos solos.

Após quase um mês, voltando para casa somente nos fins de semana, eis que se aproxima o dia de ir embora. Aprendi muito, estava satisfeito e entusiasmado com o trabalho, mas a ausência de casa sempre me incomodou. Ônibus para Goiânia somente à noite, e terminamos o trabalho pouco depois das 10 da manhã.

Nosso semblante se iluminou ante a informação do vigilante da agência de que havia um ônibus que partia às 16:00h de Porangatu, a 130 km dali, direto para Goiânia, com previsão de chegada por volta das 22:00h. Ao meio dia pegamos o cata-corno em São Miguel rumo a Porangatu. Na rodoviária nos apossamos de algumas latinhas de vitamina (na época a skol era líder de audiência) e tomamos nosso assento, lá no fundão. A estrada era uma maravilha para quem gosta de tobogã e montanha russa, e a viagem me fez sentir um passageiro involuntário de um pula-pula. Mas, enfim, chegamos a Porangatu.

Partimos direto para o guichê da empresa indicada pelo vigilante, e recebemos a informação de que não havia nenhum ônibus direto para Goiânia. O máximo que podíamos esperar era o busão que vinha de Belém e passaria por ali por volta das 17:00h. Se tivesse vaga, beleza.

Mais ou menos nesse horário chegou o ônibus de Belém, mas só tinha uma vaga. Antônio Pedro até insistiu para que eu fosse, mas estávamos juntos naquela encrenca, achei que não seria justo nem honesto resolver o meu problema e deixá-lo lá ao Deus dará. O carinha do guichê nos ofereceu passagens para Goiânia, cujo ônibus sairia dali a uma hora. Compramos e procuramos um boteco para matar a sede.

Embarcamos, um pouco mamados cansados, mas munidos de algumas latinhas para suportar a viagem. Apesar da frustração e dos desencontros, estávamos animados com a idéia de voltar para casa. Fomos batendo papo, cada um falando da própria vida, família, experiências vividas, até que notei que o busão começou a andar meio devagar demais.

Não deu outra: ao chegarmos a Uruaçu (quem não conhece Goiás vai ter que consultar um mapa), o motorista estacionou na rodoviária e informou aos passageiros que havia problemas no radiador. Então, sugeriu que aproveitássemos o momento e jantássemos, porque o conserto demoraria no mínimo 40 minutos. Havia uma churrascaria simpática na rodoviária, e para lá debandamos. Não chegamos a demorar meia hora mas, ao voltar à plataforma da rodoviária, cadê o ônibus? Por algum milagre do além o problema foi resolvido rapidinho e nós fomos deixados para trás. E nossa bagagem foi embora.

Procuramos o guichê da empresa para comunicar o fato e o funcionário fez um telefonema. Então nos informou que naquele momento estava saindo um bumba para Anápolis, que passaria pela cidade de Rialma. Passamos a ele as características de nossas bagagens e ele informou ao colega em Rialma – onde o ônibus fujão passaria -, compramos as passagens para Anápolis (mais algumas latinhas) e continuamos nossa luta para chegar em casa.

A esta altura do campeonato estávamos ainda mais ébrios cansados, e adormecemos pesado assim que saímos de Uruaçu. Por milagre eu acordei em Rialma, no momento em que o motorista iniciava os procedimentos para deixar a rodoviária, e consegui reaver nossas bagagens. Antônio Pedro continuava devidamente apagado.

Acabei apagando também, só acordando quando chegamos a Anápolis. Já passava das três da manhã, e fiquei imaginando se encontraríamos algum taxi que se dispusesse a percorrer os 50 km que nos separavam de casa. Foi quando o motorista do ônibus disse que recolheria o veículo à garagem em Goiânia, e nos levaria até lá.

Uma vez cumpridas todas as formalidades da empresa, que demoraram uma eternidade, cheguei em casa com o dia já amanhecendo. O que me deixou realmente injuriado foi que, se tivéssemos embarcado no ônibus que saía de São Miguel do Araguaia às 21:00h, teríamos chegado em casa por volta das três e meia da manhã.

Nunca mais encontrei o vigilante que nos deu a dica tão valiosa. Queria agradecer.

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UM CERTO BILLY

Conheci o carinha em 2010, cerca de dois anos após começar a seguir pela internet o Movimento Superação, formado por um bando de doidos que resolveu que as pessoas com deficiência merecem respeito. Billy é o mentor e presidente do Movimento. Além da atuação junto a entidades, empresas e políticos, reivindicando providências no sentido de abolir das cidades as barreiras arquitetônicas e culturais que historicamente segregam e excluem os ‘diferentes’, a entidade promove passeatas nas maiores Capitais, com o objetivo de atingir o grande público para essa realidade que costuma passar despercebida para quem não precisa de uma rampa, de um cardápio em braile, de um piso táctil, de um(a) intérprete de Libras.

Billy e eu, momentos antes de sairmos em passeata na Av. Paulista (acho que em 2012):
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Abaixo, imagens de passeatas realizadas em Sampa, Rio e Porto Alegre, em anos diversos:

Imagem Mogi Acessível

Passeata II

Passeata SP

Revista Reação

Billy, ao lado de outros guerreiros como Jairo Marques, tem essa capacidade de aglutinar pessoas das mais diversas classes sócio-econômicas, deficientes ou não, em torno desse projeto de tornar o Brasil menos agressivo e mais acessível àqueles que não têm a chance de levar a vida dentro daquilo que um segmento da sociedade classifica como ‘normal’.

Como pessoa, colega, parceiro e amigo, é doce. Culto e falante, valoriza a amizade como um bem precioso que precisa ser cultivado e mantido. Ao assumir, porém, o lado político e briguento, mostra os dentes e diz o que muitos não gostariam de ouvir, principalmente quando pega um microfone e deixa jorrar um rap de responsa, com letras fortes e verdadeiras. Não é uma pessoa que odeia pessoas, mas seguramente não morre de amores pelo sistema excludente que nos foi imposto por uma questionável ‘maioria’. Então, canta. E fala. E encanta. E incomoda. E conquista.

Admiro muito esse cara.

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VASECADO

Eu sou meio que desapegado das coisas, minha lista de ciúmes é bem pequena. Minha Eliana, meus filhos, minha Ninja linda, acho que são as paixões que mais me despertam esse sentimento impuro, coisa digna dos ‘cães infiéis’ na visão da galera da Al Qaeda.

Mas tem uma coisa – aliás, duas – que sempre me tiram do sério quando ameaçadas: em que pese eu não ser galinha, morro de ciúmes dos meus ovos. Pela fragilidade e delicadeza (quem tem sabe o quando dói uma pancadinha, por menor que seja), acho que a natureza errou feio ao não equipar os machos de uma couraça protetora ali, naquele ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico.

A vida, porém, às vezes nos leva a fazer concessões. Eliana precisa fazer um tratamento meio doido de pele que, por um motivo ainda mais doido e por mim não compreendido, não pode rolar gravidez no período. Aí, entramos num acordo: já que não pretendemos mais ter filhos e uma esterilização para ela seria algo extremamente invasivo e com pós-operatório complicado, procurei meu urologista de estimação e marquei uma vasectomia.

Cheguei no consultório do Dr. Sérgio cismadão, porque alguém tinha me falado que o procedimento utiliza anestesia local. Se uma bolada já é uma coisa terrível, uma agulha seria algo bem próximo do inferno. A princípio a cirurgia seria custeada pelo meu plano de saúde, então tive que preencher alguns formulários em que afirmo que o procedimento será feito por minha livre e espontânea vontade, blá blá blá.

Alguns dias depois fui informado pelo médico que o procedimento só poderia ser feito na modalidade ‘particular’. Logo imaginei que o plano de saúde estava pagando uma merreca. Liguei lá e perguntei quanto pagavam pela vasectomia. O carinha que me atendeu perguntou “unilateral ou bilateral?” e eu fiquei atônito. Será que alguém faz meia vasectomia ou ele achou que eu era monobola? Aí fui informado que o plano pagava R$ 100,00 per capita (ou em bom latim, per bulla).

Pensa: o cara estuda durante sei lá quantos anos para se formar médico, depois faz residência, especializações, e na hora de ser remunerado por um procedimento cirúrgico – que, como toda cirurgia, inclui riscos -, é oferecido o equivalente a uma despesa de rodízio com a família, 10% incluídos. Topei pagar os R$ 1.600,00 cobrados.

Por se tratar de uma cirurgia simples, o procedimento seria feito em ambulatório. No dia marcado cheguei com a antecedência pedida, fiz os chequinhos (um para o médico e outro para o anestesista) e logo fui chamado. Dr. Sérgio me apresentou o anestesista, fizemos algumas piadas, ele explicou que me botaria para dormir antes das agulhadas fatais, vesti aquele camisolão ridículo, que deixa a bunda de fora (alguém pode me explicar o porquê daquilo?) e me deitei com as vítimas para cima na maca cirúrgica.

O anestesista me aplicou uma intravenosa e em poucos segundos eu estava nos braços de morfeu. Acordei com a cirurgia ainda rolando, o ambiente estava tomado por uma risaiada desenfreada. O anestesista é um sacana inveterado, e estava oferecendo meu bilau para a enfermeira. Eu ainda estava grogue, mas notei uma pessoa estranha àquela turma que estava comigo até eu apagar. Vestido de médico, mais parecia um totem. Olhei para a figura, depois perguntei ao anestesista: o que foi que você me aplicou? Quem é esse ciclope de dois olhos?

O cara riu e me disse que era neurologista. Estava ali porque precisava da ajuda do Dr. Sérgio assim que ele terminasse o procedimento, e foi convidado a entrar e acompanhar a cirurgia. Disse também que mede 2,02m, mas não joga basquete. Boa praça, apesar de corinthiano.

Terminada a cirurgia, a enfermeira botou um esparadrapo sobre os pontos. Meu saco ficou parecendo uma placa de contramão. Fui orientado a retornar lá no dia seguinte, para verificação do curativo, voltei pra casa ainda grogue tendo Eliana como motorista, mas acabei não dormindo, como achei que deveria e merecia. Cismei que seria mais produtivo terminar de ler um livro da Martha Medeiros que iniciei há um tempão e nunca arranjo tempo (aposentado sofre).

Meu retorno à clínica só serviu para a retirada do esparadrapo e as recomendações de praxe: três dias sem beber, cinco sem andar de moto e quinze sem o direito de reclamar de carência. Se sentisse dor – e doeu bagarái – eu estava liberado para tomar um analgésico. O resto se resolveria com o tempo.

Analisando a área, acabei concluindo que o Dr. Sérgio é um médico de catiguria, cirurgião de responsa, mas desconfio que andou matando algumas aulas de corte e costura.

A propósito, soube depois que o tal médico de dois metros de altura nunca existiu. Devo ter sofrido alguma alucinação pela ação da anestesia.

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O IMPOSTO E A RENDA

Sempre achei estranha essa mania que o governo brasileiro tem de achar que salário é o mesmo que renda. Rezam as cartilhas de contabilidade, finanças e economia que renda é o resultado – que pode até ser negativo – de uma aplicação de dinheiro em determinado ativo financeiro. Ações, por exemplo, renda fixa ou até mesmo a popularíssima caderneta de poupança, além de aluguéis e outros investimentos. Salário é pra pagar moradia, escola e supermercado. Mas é bem mais cômodo para o governo pensar assim, porque abocanha na fonte e não tem que correr atrás de sonegadores que, não raro, financiam as campanhas políticas da maioria dos bandidos que habitam as torres gêmeas de Brasília. Não dá pra bater duro na galinha dos ovos de ouro, né não?

Estou aqui às voltas com minha declaração anual, feliz da vida porque a matemática do governo insiste em me cobrar quase três paus de impostos, apesar de eu ter pago um monte todo mês durante o ano passado. O problema é que tenho duas fontes de renda: o INSS, que me contempla com a merreca da aposentadoria, e meu fundo de pensão que complementa meu salário. Mais de uma fonte de renda é sinônimo de castigo aos olhos do leão.

O mais interessante nisso tudo é a forma ‘diferenciada’ com que o felino fedido trata os contribuintes. Quando na ativa eu recebia todo fim de ano participação nos lucros e resultados, a popular PLR, e logo de cara já deixava de lembrança 27,5% de IRRF para o engrandecimento da pátria. Por outro lado, um empresário – digamos o Antonio Ermírio ou o Eike – recebe os dividendos após o fechamento do balanço. Tecnicamente PLR e dividendos são a mesma coisa, uma gratificação pelos lucros auferidos pela empresa, mas há aí duas diferenças: a) os dividendos são isentos de imposto de renda; b) a PLR era coisa de R$ 5 ou 6 mil, já os tais dividendos contam-se na faixa das centenas de milhares ou até mais. Essa aberração encontra respaldo na lei, mas quem é que faz as leis, mesmo?

Ao apagar das luzes de minha carreira bancária, foi criada uma linha de crédito voltada para pessoas físicas de alta renda, só para a galera da coluna social. De vez em quando um ou outro aparecia na coluna policial, mas isto é outra história, o povo tem memória curta, o cara virava ministro e tudo voltava a ter ares de normalidade. Pois bem: o cabra dizia quanto queria de empréstimo e tinha que dar em garantia imóveis quitados em seu nome, a chamada garantia real, em valor superior a 120% do empréstimo. Uma operação como outra qualquer.

Ocorre que fui designado para auditar contratos da espécie. Por dever de ofício não vou dar nomes aos bois, mas deixo um exemplo dos muitos que vi: o cidadão, empresário, comprovou documentalmente uma retirada mensal a título de pro-labore no valor de R$ 40 paus. Apresentou a escritura de alguns imóveis residenciais e comerciais e uma calhamaço de contratos de locação e recibos, o que elevou sua renda mensal para prosaicas R$ 62 pilas (eu estive em Santa Catarina semana passada e aprendi a falar assim). Com um cacife assim, não teve nenhuma dificuldade em obter um empréstimo de quase um milhão. Nada a reparar, tudo certo, tudo legal, dentro do que preceituam os normativos internos e as boas práticas bancárias.

O que de fato me chamou a atenção foi a declaração de renda do pobre coitado, que estava inserida no processo. A Receita Federal não viu um único centavo do camarada, porque a renda declarada dele estava na faixa de isenção. Ironicamente a relação de bens, em valores históricos (não atualizados monetariamente desde a aquisição), batia em R$ 1,38 milhão. Eu daria o Nobel de economia, mágica ou cara de pau para o carinha, mas aí me lembrei que já caí na malha fina porque minha empresa informou para a Receita Federal valores divergentes daqueles que me passou para fazer a declaração. Por que a RFB foi tão rigorosa comigo e abre as pernas para o empresariado? Será que a galera da fiscalização trabalha na base da omissão remunerada? Os sistemas da Receita não cruzam informações para identificar esse tipo de aberração?

Eu até não me importaria de pagar tanto imposto, se a escola aqui do lado não estivesse depredada, se o SUS não vivesse numa situação de greve permanente, que se manifesta na falta de médicos e materiais básicos, se houvesse UTI neonatal nos hospitais públicos, se eu tivesse a certeza de voltar inteiro pra casa ao sair à noite para ir à padaria. Também seria legal se eu não tivesse que correr o risco de ser atropelado porque as calçadas não existem ou estão cheias de lama.

A mesma lama que insiste em manchar o currículo da imensa maioria daquela classe que deveria olhar por nós.

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A REFORMA

Nas últimas semanas eu andei mais chato que o Richard Clayderman interpretando Amado Batista. Normalmente o Dorival Caymmi perto de mim seria um cara estressado, mas tive que dar a ele alguns dias de licença prêmio, porque a coisa andou meio punk por aqui.

O problema começou com o mofo nos armários embutidos dos banheiros. O marceneiro confirmou nossa desconfiança de que era caso de perda total, e retirou os armários. Eliana e eu resolvemos radicalizar: ao invés de simplesmente encomendar novos armários, que tal dar uma reforma geral nos banheiros?

Primeiro foi o banheiro social. Já comecei meio mal porque queria substituir a porta convencional e absurdamente estreita (60 cm), por uma de correr, para permitir a entrada de uma cadeira de rodas. Que graça tem eu convidar um amigo cadeirante pra detonar umas ampolas aqui em casa, se na hora do xixo vai ser puro sufoco? Não deu sequer para substituir a porta por uma mais larga, porque a instalação elétrica estava logo ali na beirada, e havia uma coluna de seilaoquê que não me permitiria alargar o nicho da parede. Aquela coisa: o puto do construtor não fez o apartamento para a mãe dele morar.

No total dois banheiros, idênticos na planta mas que possuem uma diferença pequena nas dimensões, coisa de centímetros. Logo no primeiro dia isto aqui se transformou numa réplica reduzida da casa da família Adams, sem as teias de aranha. Um caos, escudado na trilha sonora produzida por uma criação do capeta chamada maquita, que também se encarregou dos efeitos visuais, na forma de um pó fino capaz de fazer o menino maluquinho* querer se mudar pra cá.

Eliana é alérgica; eu não era e fiquei. Depois que a dupla do barulho se mandava eu tentava dar um trato no chão de todo o apartamento antes que a madame chegasse do trabalho (sim, alguém tem que trabalhar nesta casa, ora pois!), porque aquele pozinho excomungado é igual a pernilongo, sempre acha uma brecha. Vedei todas as portas com panos umedecidos, e mesmo assim tinha pó até na cozinha. Além de emporcalhar a casa toda, o sacana também faz curva.

Tem uma coisa que me intrigou: como é possível uma pessoa estudar durante cinco ou seis anos, e cometer erros tão grosseiros na hora de calcular a metragem necessária de pisos e revestimentos? Cada banheiro tem algo parecido com 16 m2, a arquiteta conseguiu errar tudo. Após ser alertado pelo profissional que contratei para fazer o serviço, telefonei para a loja que me cobrou os tubos pelo material, projeto incluso. No início tentaram me convencer de que não houve erro, mas tiveram que reconhecer que faltaram três peças de piso e sete metros lineares de revestimento. “Tudo bem, é só vocês me mandarem o material que falta”. Que babaca que eu sou… a resposta do lado de lá foi “tem um probleminha de estoque, precisamos pedir à fábrica, no Rio Grande do Sul. Deve chegar em 20 ou 30 dias”. Budabariu nóis tudo!

Não sei se por vergonha ou por milagre, as peças que faltavam chegaram em cinco dias. A esta altura já estava sendo trabalhado o banheiro da suite, já que o que ainda faltava assentar no social seria afixado embaixo da bancada, sem maiores prejuízos além do estético. Até já tinha sido colocado o box de blindex, e o banheiro ficou tão chique e bonito que dava pena mijar nele.

O trabalho na suite me deu uma canseira adicional, porque o armário possui portas de correr. Para vedá-lo e proteger as roupas lá de dentro, tive que improvisar uma cortina de papel kraft fino, presa por fita adesiva. Um trabalho que provavelmente até boliviano da boca do lixo de São Paulo recusaria ganhando bem. A cama e os criados mudos eram protegidos por lençóis, coisa mais linda, parecia caminhão de palestino. E tome poeira e 200 decibéis da tal maquita.

Como não há mal que sempre dure, ao cabo de quase 15 dias (a previsão era seis), os dois banheiros ficaram prontos. O profissional que fez todo o trabalho, Delmir, junto com seu sobrinho-ajudante-aprendiz John Kennedy – aqui em casa não entra qualquer um -, é fera. Cobrou caro, mas estou para ver trabalho tão meticuloso e com resultado final de encher os olhos como o daqui.

Pretendemos, lá por 2015, substituir o piso de todo o apartamento, seguindo a tendência pequeno-burguesa de assentar um porcelanato. Ainda não definimos a época mas, considerando a subestimada capacidade de um reles banheiro de 16 metros quadrados produzir tanto pó, já temos a certeza de que durante as obras estaremos morando provisoriamente em outro lugar.

* Nada a ver com o personagem do Ziraldo

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