Fui apresentado a esse vídeo ontem ou anteontem, produzido no já manjado estilo ‘bora esculachar, que é chique e tá na moda’. De início estranhei tratar-se de um apêndice eletrônico da revista Super Interessante, que normalmente se ocupa de assuntos outros. Porém, como a pátria-mãe é a Editora Abril, fica explicado o DNA que caracteriza a Veja. Tudo em casa.
É claro que concordo que a taxa de juros remuneratórios do FGTS, de 3% ao ano, poderia empatar com os 6% da caderneta de poupança. Mas o vídeo peca pelo equívoco – que mais parece saído de um saco de maldades, já que equívocos são geralmente involuntários – de colocar o FGTS no mesmo patamar dos chamados ativos financeiros. Até os ácaros lá de casa, pelo menos os honestos, sabem que o FGTS é um ativo social, jamais financeiro ou especulativo.
Não tenho a pretensão de dar aula para o jornalismo da Abril, que conhece a verdade mas de vez em quando aparece com essas licenças poéticas. Mas vale fazer alguns esclarecimentos.
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi idealizado como regime alternativo à estabilidade no emprego, assegurada pelo art. 157, XII, da Constituição de 1946 e regulada pelos artigos 492 a 500 da CLT. O antigo regime de estabilidade era muito criticado, pois vivia sendo sabotado pelos empregadores, que costumavam dispensar os empregados em vias de completar 10 anos de serviço na mesma empresa para, logo após, readmiti-los. Naquela época já havia os espertinhos.
Além de constituir um pecúlio ao trabalhador para o momento de desligamento do emprego, também tem seus recursos utilizados pelos programas sociais que buscam oferecer o acesso à moradia popular, além de constituir uma das fontes de financiamento das obras de saneamento básico.
Quem conhece um mínimo de finanças sabe que em todos os setores da economia é imperativo o equilíbrio financeiro. Isto significa que não se pode pagar mais do que se recebe, sob pena de simplesmente falir. Então, é importante lembrar que os financiamentos imobiliários para a população de baixa renda e os recursos aplicados no saneamento são feitos a juros baixos. Por consequência, não é inteligente supor que a remuneração do FGTS ocorra como se fosse uma aplicação em ações da AMBEV.
Mesmo assim, não podemos comemorar a situação do Brasil, porque o déficit habitacional é grande e o percentual da população atendida por água encanada e esgoto sanitário ainda é muito baixo. Basta dizer que 34 milhões de brasileiros ainda não têm acesso a água encanada e apenas 38,7% dos esgotos gerados são tratados, segundo dados de 2012 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento-SNIS.
As aplicações dos recursos do FGTS exercem, ainda, um papel importante na saúde e na economia. Dados extraídos do Estudo “Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento Brasileiro”, realizado em 2014 pelo Instituto Trata Brasil/CEBDS, indicam que somente em 2013 foram notificadas pelo SUS cerca de 340 mil internações por infecções gastroinstestinais, ao custo estimado de R$ 355,71 por paciente. O mesmo estudo avalia que se 100% da população tivesse acesso à coleta de esgoto, havia uma redução de quase 75 mil internações, além de uma redução de 15,5% das 2.135 mortes ocorridas naquele ano.
É claro que a galera que faturou 2.785% em ações da AMBEV se preocupa muito com pobre morrendo, né?
De quebra, em 2012 o setor de saneamento gerou 726 mil empregos diretos, indiretos e de efeito renda em todo o país, sendo 210 mil diretos nos serviços e 516 mil gerados pelos investimentos.
Será que ainda acham que o FGTS precisa ser um ativo financeiro-especulativo?
Se os números atuais já não são uma Brastemp, como estariam as coisas hoje em prevalecendo essa mentalidade digna de saneamento básico, que só pensa em especulação? É desperdício pensar em proporcionar casa e saúde para pobre? É bom lembrar que saneamento básico é para todos.
Nos meus 32 anos de trabalho na Caixa Econômica, boa parte lidando direta ou indiretamente com o FGTS, testemunhei dezenas de ataques ao fundo de garantia, a maioria (senão todos) com intenções inconfessáveis. Foram diversos os botes de grandes bancos querendo abocanhar essa mina de ouro, que arrecadou em 2012 R$ 83 bilhões.
Então, é de se recomendar cautela com informações tendenciosas que são disseminadas na grande imprensa (que no mais das vezes é movida a canalhice e interesses corporativos), e manter um pé atrás, talvez os dois, quando surgem vídeos simplistas como o que acabamos de ver.
Duvido que o vídeo tenha sido produzido com boas intenções.