Quem me acompanha aqui ou na vida sabe que minha filha Ana Paula era uma criança com deficiência. A consequência mais visível era sua cadeira de rodas. Viveu entre 1987 e 1994, num período ainda longe do obscurantismo que hoje nos ameaça, mas ainda assim não foram poucos os perrengues que enfrentamos por obra e graça da ignorância alheia.
Era estarrecedora a falta de tato das pessoas, que ignoravam sua capacidade de compreensão e deitavam comentários destrutivos da forma mais desrespeitosa possível. Minha filha era a pessoa mais feliz, pra cima e irreverente que me foi dado beijar, e resolvi que não permitiria qualquer dano a sua auto-estima, ainda que proveniente de gente sem noção.
Meu sangue desafiava a lei da gravidade toda vez que rolava uma pérola que ainda hoje se ouve. Um belo dia estávamos em casa, numa reunião de família, e uma tia velha veio com a cereja ‘coitada, ela é doentinha, né?’. Assim, na frente dela. Na primeira oportunidade esclareci: ela era coitadinha enquanto estava sob os cuidados do juizado de menores, quando vivia cagada e passando fome; agora deu uma melhorada. Soube depois que ela disse ter ficado ‘sentida’ com minha resposta. Tudo bem, já naquela época o botão do foda-se estava disponível e às vezes eu usava com gosto.
É possível que hoje, mais velho sereno, minhas reações fossem mais light, mas é difícil me convencer de que eu teria exagerado naquela época. Basta dizer que minhas meninas foram discriminadas pela própria Caixa Econômica, minha empregadora, pelo fato de serem adotivas. Às vezes é necessário pegar o leão pela juba.
Qualquer dia eu falo sobre isso.