SOCIAL

No já longínquo abril de 1981 abdiquei de minha condição de morador de Brasília e aportei em Goiânia para assumir cargo conquistado por concurso público no Banco Nacional da Habitação-BNH, que seria absorvido pela Caixa Econômica Federal seis anos mais tarde.

Éramos uma turma de no máximo 30 pessoas, a maioria esmagadora com idades entre 20 e 23 anos, a serem chefiados por ‘senhores’ na casa dos 30. Os sonhos eram muitos, a disposição para a farra também se destacava, mas o que mais queríamos era trabalhar naquela empresa que nos oferecia um bom salário e condições plenas de trabalho. Na prática o BNH ainda não existia na capital goiana, sua inauguração estava agendada para algo em torno de 30 dias, no mais tardar dois meses.

Os primeiros dias foram dedicados à acomodação da galera que não parava de chegar. Com base nas respostas que demos ao questionário distribuído, versando sobre questões como “gosta de cálculos?”, “tem afinidade com legislação e análise de processos?”, “gosta de atender ao público?” a lotação foi se materializando. Minhas respostas me encaminharam diretamente para a área do FGTS, que envolve cálculos, legislação, processos e atendimento ao público. Sempre gostei.

A partir dali eu e demais colegas de área passamos semanas inteiras nos dedicando ao estudo daquela matéria complexa e fascinante, e nossa insegurança fazia com que comemorássemos sempre que chegava a notícia de que a inauguração teria que ser adiada por problemas de agenda entre o então governador do Estado Ary Valadão e o Ministro do Interior Mário Andreazza. Na verdade eles se detestavam e ficaram nesse joguinho idiota de inventar compromisso para derrubar a agenda do outro, mas finalmente chegou o dia da inauguração. Já tínhamos seis meses de empresa.

Nossos estudos envolveram leitura e discussão dos normativos e legislação aplicada, debates entre nós mesmos e a chefia, simulações de atendimentos com a inserção de situações de conflito. Às sextas-feiras tínhamos as reuniões sempre festivas, durante as quais alguns conceitos nos foram colocados com caráter de cláusulas pétreas, como o atendimento exemplar, pautado na obrigatoriedade de atendermos ao público com cortesia e domínio da matéria. Nosso gerente não se cansava de nos lembrar que o BNH era uma empresa pública, que seria eterna enquanto fosse necessária aos olhos da população, o que de certa forma jogava uma responsabilidade enorme sobre nossos vinte e poucos anos. Mas curtíamos muito a expectativa de enfrentar os desafios. Ah, a juventude…

O início do trabalho nos deu a certeza de que os treinamentos e estudos foram suficientes e de qualidade. Como havíamos introjectado o atendimento nível porreta como objetivo, tínhamos sempre um motivo para um chope na sexta-feira. Assim os anos foram passando, os colegas foram assumindo funções de chefia, eu fui designado para a inspetoria, até o belo 22 de novembro de 1987 amanhecer e nos surpreender a todos com a notícia de que o BNH não mais existiria e teria suas funções absorvidas pela Caixa Econômica Federal. Decreto-Lei, of course, ainda vivíamos os últimos cacoetes da ditadura.

Nossa integração à nova empresa não se deu de forma assim tão pacífica, mas acabou ocorrendo. Durante bom tempo fomos tratados como uma empresa à parte, uma espécie de segunda divisão,  mas conseguimos manter nosso trabalho em bom nível de qualidade, em que pese notarmos que não havia valorização ao que fazíamos. Resolvemos encarar aquilo como um problema ‘deles’, até porque nossa avaliação comparativa reversa colocava a qualidade gerencial ali como algo que oscilava entre o amador e o sofrível.

Conforme os governos iam se sucedendo os investimentos em tecnologia e aprimoramento rareavam, principalmente se o mandatário de plantão fosse chegado numa privatização. Por uma estranha coincidência, a qualidade dos serviços prestados pela Caixa à população desabava se houvesse algum projeto ou intenção de privatizar a empresa. A velha história de torná-la descartável aos olhos do povo, afinal se o cabra procura uma agência e não tem sua demanda atendida, seja por deficiência técnica ou falta de empregados, como esperar que a população defenda a empresa?

Em pleno século XXI esse fenômeno, por ser cíclico, volta a rondar a Caixa. Não por acaso as décadas nos impuseram, com raríssimas exceções, animais os mais diversos na presidência da Caixa Econômica Federal, variando entre ostras, antas, pavões ou reles cacatuas, mas esse de hoje me parece bater todos os recordes, a começar pela cara de orgulhoso suricato com hérnia de disco que ostenta quando o presidente da república fala merda numa solenidade. E o presidente da república, como sabem, fala merda com alguma regularidade. Algo me diz que se o presidente da república tomar um chute no saco, cai a obturação da figura em questão e o sanfoneiro ao lado sai mancando.

Vez por outra a vida me convida a repensar minha arrogante ausência de devoção cristã. O fato de já ser um aposentado da Caixa, não mais estar sob as ordens do presidente de plantão e, por consequência, não ter que aturar o que rola de estupidez de seu gabinete é uma dessas ocasiões. Rezam a escrituras sagradas que eu deveria dar graças aos céus. Mas no fundo aquelas estultices sempre me afetam o espírito de alguma maneira, principalmente porque as atitudes dessa gente atentam contra tudo aquilo que com orgulho ajudei a construir. 

Nos dias de hoje uma unidade da Caixa que iniciou o ano com um número x de funcionários conclui o ciclo com uma diminuição do contingente entre 5 e 10%, o que é natural considerando que as pessoas morrem, se aposentam, cometem falhas que justificam uma demissão, pedem para sair.  Quando, porém, a empresa se recusa a repor o quadro porque antes se recusou a promover um concurso público ou, pior, se recusa a convocar aprovados do último concurso, a coisa muda de figura e passa a constituir má intenção.

Porque se o trabalho que era executado por 30 pessoas de repente precisa ser realizado por 28, depois por 25, depois por 20, é claro que cairá a qualidade, aumentará o tempo de execução e atendimento, haverá atrasos, as filas serão uma consequência natural, as reclamações também. Some-se a isto a teimosia da empresa em contratar sistemas computacionais de quinta e não atualizar servidores e demais itens de hardware, e temos uma receita perfeita de angu. E a reclamação nunca é dirigida à direção da empresa, o alvo preferencial é o badequinho de canela exposta na unidade onde o time desfalcado tenta sobreviver. A imprensa ajuda a identificar esse “culpado”, já que os jornais locais do meio dia mostram as agências, suas filas e mazelas, mas nenhum outro programa jornalístico, de âmbito regional ou nacional, cultiva o saudável hábito de perguntar à diretoria da empresa o porquê daquilo.

Minha geração economiária traz no currículo greves memoráveis, movimentos reivindicatórios não-grevistas igualmente vitoriosos, conseguimos reverter cagadas ilegais cometidas por Sarney e Collor de Melo, enfrentamos com sangue nos olhos as investidas de FHC, o príncipe da privataria, peitamos gerentes e superintendentes cretinos. Quando hoje em dia a vida e a pandemia nos permitem um reencontro, é sempre saboroso rememorar essas passagens e homenagear os parceiros que já não estão conosco e foram muito importantes nessa trajetória. Olhar para trás e ver um rastro de dignidade é para poucos. Sorry, pelegada.

Hoje vejo com imensa tristeza um ambiente perigosamente propício para a entrega da Caixa e suas operações sociais ao grande capital, sonho de consumo de muitas raposas com DNA privado e privatista que ao longo das décadas deram expediente nos ministérios ou foram por eles nomeadas. No campo funcional fomos substituídos por uma quase maioria que integra algo quiçá classificável como geração pré-X, que não almeja seguir carreira e está na empresa somente enquanto não encontra algo mais atraente de acordo com suas expectativas materiais ou de mera vaidade. Por consequência, está pouco se lixando para os programas sociais historicamente tocados pela instituição em nome do governo federal e, é claro, nem sonha em se indispor com o chefe por algo que mesmo de longe se aproxime do bom e velho idealismo. Esses meninos de agora esculacham os sindicatos e federações de empregados, ao mesmo tempo em que se esforçam para repetir os mantras e discursos dos patrões.

Lamento, mas é outra época, são outras pessoas, em que pese as necessidades da população serem basicamente as mesmas. Vejo o risco hoje maior, e sinto arrepios quando passo em frente a uma agência dos Correios.

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