Lá nos idos de 2000, mais especificamente em 19 de dezembro, foi aprovada a Lei 10.098/2000, que estabeleceu diretrizes, direitos e obrigações no tocante à questão da acessibilidade no Brasil. Como o público mais diretamente beneficiado por essa lei tem um prestígio invejável, o decreto que a regulamentou demorou apenas quatro anos para ser publicado e levou o número 5.296/2004.
Lei e decreto detalham os vários tipos de deficiência (física, sensorial, mental) e definem os conceitos de barreiras, acessibilidade, edificações e logradouros públicos, privados e de uso comum e as formas com que, a partir de sua publicação, serão cumpridas as determinações estabelecidas a fim de proteger a incolumidade física e o direito à cidadania plena das pessoas com deficiência.
Existem dispositivos legais de âmbito estadual e alguns até municipais, mas a lei e o decreto federais de que falo são, a princípio, as referências para quem trabalha ou se preocupa com a questão da acessibilidade em nossas ruas, prédios e praças. São nossas cartilhas.
Fazendo um resumo bem mequetrefe, ficou estabelecido que rampas, elevadores, pisos podotáteis, instalações sanitárias adaptadas, comunicação visual, dentre outras exigências, deveriam passar a figurar como itens obrigatórios nos prédios públicos e mesmo nos privados de uso comum, como escolas, faculdades, estádios, prédios comerciais, etc. E tem os detalhes:
Destaque para o artigo 24 do Decreto 5296/2004, acima, que trata especificamente da acessibilidade nos estabelecimentos de ensino públicos ou privados.
Pois bem: no ano passado, 14 anos após a publicação da Lei 10.098/2000 e 10 anos após o difícil parto do decreto que a regulamenta, alguém em São Paulo cismou que algo não estava legal. Chegou-se à conclusão de que as escolas públicas do estado estavam pouco se lixando para a Lei da Acessibilidade, fato este que tinha como consequência direta a exclusão inconstitucional de pessoas com deficiência.
Felizmente, quando tudo parecia perdido, eis que o assunto foi transferido para os guardiões da Lei do Ministério Público estadual. Agora sim!
Quer dizer… peraí… diabeísso?… coméquié memo?
A solução encontrada, provavelmente após exaustivos debates, foi a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta, firmado entre o MP/SP e representantes do Estado de São Paulo, cuja decisão final, ‘justa e contratada’, é a seguinte:
SEE é a sigla de Secretaria Estadual de Educação.
Aí me bateu a velha mania de analisar, com os olhos críticos do velho auditor que ainda não morreu em mim, essa cagada em forma de TAC.
Apelemos para a matemática: o Decreto 5.296 foi publicado em 2004, o que deu de saída uma folga de quatro anos para ajuste de quem, por incompetência ou desconhecimento, ainda não tinha adotado medidas capazes de eliminar as barreiras arquitetônicas e atitudinais que emperram o exercício da cidadania. Uma vez publicado, o decreto resolveu conceder mais três anos, no mínimo, para que os gestores (que nada haviam feito até então) finalmente investissem em educação inclusiva. Não percam a soma: 2000+4+3=2007. Já estávamos em 2007 e nada de cumprimento da lei.
O tempo passa, o tempo voa, e os gestores públicos de merda continuam numa boa. Para estupefação ampla, geral e irrestrita, sete anos após o prazo final estabelecido criou-se o tal TAC, que serviu para premiar a omissão e o descaso, além de, é claro, condenar as pessoas com deficiência a mais um tempinho de obscurantismo compulsório. Como se estivessem precisando dessa mãozinha de quem deveria defender seus interesses. Aliás, as declarações à imprensa, tanto do MP/SP quanto de setores do governo de SP, foram pérolas à parte:
“Esse TAC tem em vista o ser humano como valor fundamental” – Procurador-Geral de Justiça, Márcio Elias Rosa.
“Não há defesa da sociedade senão na perspectiva da pessoa humana” – Procurador-Geral de Justiça, Márcio Elias Rosa.
“O Estado tem obrigação de garantir, com trabalho planejado, que as crianças da rede pública de ensino tenham dignidade em sua educação” – Herman Voorwald, Secretário de Educação.
“Estamos buscando atender a legislação oferecendo condições de dignidade aos alunos da rede” – Maria Elizabete da Costa, Coordenadora de Gestão da Educação Básica, da Secretaria de Educação.
“Trabalho com sinergia para a construção de caminhos acessíveis” – Secretária Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Linamara Batistella.
Impressão chata de que o assunto foi tratado por principiantes. Na vida real, longe de câmeras e holofotes, o que veremos serão mais 15 anos de omissão governamental para, quem sabe, novo TAC e novo prazo. Nos dizeres do advogado e jornalista Adelino Ozores sobre o assunto, “(…) brincam de “fazer educação”, as pessoas com deficiência ficam fora das escolas, das universidades e são vistas como desinteressadas pela sociedade. Empresários as apontam como sem qualificação para o emprego e pedem que mudem a lei de cotas. Estão brincando com vidas e com a Constituição, que garante educação para todos, ratificada pela Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência”.
Não ficarei surpreso se surgir a notícia de que pediram desculpas ao governador pelo incômodo.