BELLUM DOMINORUM

Os fatos que se sucedem vêm me mostrando que devo me preocupar. O mundo, além de muito chato, agora deu de ficar particularmente perigoso. O recente atentado de Paris é só um exemplo.

Para ficar no passado recentíssimo, foram oito ações violentas – a maioria considerada ato terrorista – praticadas por grupos que rivalizam em periculosidade com nossas torcidas organizadas. É um tal de Boko Haram, além de grupos como o autodenominado Estado Islâmico, o Talibã, o Al Shabab e outras quadrilhas que até nos fazem esquecer a Al Qaeda. 

Está perigoso e devemos nos preocupar por alguns motivos até simples: os radicais islâmicos se acham no direito de ditar regra até para quem não é islâmico. Retratar seu suposto profeta, tal de Maomé, é punido com a morte, a galera do Charlie Hebdo que o diga. Aliás, só o fato de não ser islâmico já é meia sentença, dependendo do humor do sacripanta barbudão de metralhadora mais próximo.

Geralmente após os espetáculos de medo, sangue, intolerância e morte aparecem as vozes de conciliação, querendo convencer o mundo de que os do mal são uma minoria, que o Corão prega o amor mas é interpretado ao pé da letra (se o verso diz que é pra enfiar a adaga no pescoço do infiel, como deve ser interpretado?). Mas aí entram em jogo duas ciências exatas: a estatística e sua mãezona, a matemática.  A primeira mostra que são 7,3 bilhões de almas no planeta, dos quais cerca de 24% são muçulmanos, o que dá 1,75 bilhão. Uma vez aceita a tese da minoria, consideremos que ela representa algo como 0,01% do total. Mais minoria do que isso, só a torcida do Bangu.

Apelemos para a segunda ciência exata (0,01% de 1,75 bilhão) e teremos 175.000 malucos mundo afora nos ameaçando porque somos porcos infiéis, metendo bala e gritando que Alá é grande. Tudo porque não cultivamos aquele hábito esquisito de cinco vezes por dia render salamaleques com o cu voltado para Meca. Ou em sentido contrário, sei lá.

Recentemente acessei um blog mantido por uma brasileira convertida ao islã, que faz a defesa de sua religião e repete os mantras conhecidos, minorias radicais e maioria pacífica à frente como argumentos incontestáveis. Diz que todas as religiões têm lá seus fanáticos e que está cansada de ter sempre que explicar isso e esclarecer que adora usar aquele véu que cobre a cabeça e não raro esconde o rosto.

De certa maneira eu também me sinto cansado, mas de sentir medo, insegurança. Minha opinião sobre religiões é por demais conhecida e nada recomendável, mas não acho justo que se trace um paralelo entre um fanático católico ou evangélico e um fanático islâmico. Os cristãos não se caracterizam por jogar bombas nos outros (não confundir com governos ocidentais ávidos por petróleo) nem descarregam metralhadoras em restaurantes, casas noturnas e redações. Essa diferença é fundamental.

Fanáticos ou fundamentalistas católicos, evangélicos e de outras religiões incomodam somente por serem extremamente burros e/ou desonestos, mas a agressão que praticam fica num patamar bem menos belicoso do que a praticada pela galera que acredita ter um monte de virgens lhe esperando do lado de lá.  

Lembro que foram necessários apenas dois malucos para fazer aquele estrago no episódio do Charlie Hebdo e somente oito em Paris. O banco de reservas, portanto, estava lotadão, à disposição do ‘professor’.

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Ah, nem!

Desde a primeira vez que ouvi – e ouvi várias vezes – que o tema da redação do ENEM era feminista, a tendência para rejeitar o rótulo foi muito grande. Quando os ‘ismos’ são aplicados, me parece que os assuntos ficam adstritos a um grupo ou movimento, e a questão do respeito à mulher é absolutamente abrangente na vida em sociedade, seja quando o assunto é violência física, violência moral (inclua-se nesses dois tipos a ocorrência do estupro e crimes assemelhados), desigualdade no trabalho, exploração doméstica, preconceito sexista. Então, não vejo feminismo, mas interesse social. 
 
Fui criado num meio muito propício à deformação de caráter, meus amigos de infância em maioria demonstravam terríveis tendências à violência, ao desrespeito e ao ‘elogio da superioridade masculina’, base para o quadro animalesco atual, e consegui crescer livre desse ranço.
 
Sou grato por isso, a ponto de sentir pena de pessoas com maior ou menor poder de influência que não perdem uma oportunidade de destilar pobreza espiritual travestida de opinião abalizada.
 
Mas a origem da reação negativa ao tema da redação não me parece ter muito de machismo ou preconceito. O que de fato aparenta é a dificuldade decorrente – e recorrente – da ausência do saudável hábito da leitura, que seria a alavanca a conferir aos candidatos alguma habilitação para tecer comentários ou emitir opinião acerca de um assunto que exige muito mais do que oferecem suas cabezitas, boa parte forjadas em League of Legends ou no Whatsapp. Como esperar que essa horda de analfabetos funcionais discorra sobre temas com algum grau de complexidade?
 
O resultado final é o mimimi da maioria e a comemoração das exceções. Normal. 
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DE GAIATO

Como autêntico tupiniquim que não se deixa abalar por um reles 7×1, desde sempre sou chegado numa boa peleja do rude esporte bretão, conhecido mais popularmente como ludopédio. Sempre que há chance vou ao estádio torcer pelo meu time e, no mais das vezes, volto para casa meio tonto e muito afônico.

Não que eu seja fanático, como algumas pessoas que conheço que chegam a adoecer quando seu time perde, mas me lembro de duas situações que enfrentei em que o fanatismo alheio ou a simples falta de noção quase me botam numa fria. 

Episódio 1 – Maracanã, 1991 – Botafogo 3 x 3 Vasco da Gama

O personagem desse jogo não entrou em campo, mas foi ao estádio comigo. Era consenso entre os amigos que Liminha só não era um espírito de porco juramentado porque media pouco mais de 1,55m, não cabia um suino ali. Para complicar era tricolor, do tipo que levava uma lata com pó de arroz nos jogos do Fluminense, mas topou ir comigo ao Maraca naquele dia porque eu já tinha ido com ele em alguns jogos de seu time e nossa amizade transcendia essas paixões futebolísticas. O cara bebia bem, era figura considerada no Amarelinho e nunca nos faltou mesa por ali. Bom papo, leal e engraçado, de vez em quando me bate saudade daquele puto, que resolveu ir de repente (2004) para o andar de cima sem consultar as bases do partido.

Nós nos acomodamos no meio da torcida do Fogão, e pedi encarecidamente ao Liminha que não revelasse seu time do coração pra ninguém ali. Pedi por pedir, porque já tinha sido um parto a fórceps convencer o cara a deixar na gaveta a camisa do Fluminense.

Pelo placar deu pra perceber que foi um jogão, né? Começamos ganhando com gol do Valdeir, o Flash, o Vasco empatou, fizemos 2×1 e o Vasco empatou de novo para em seguida virar o jogo. Jogo duro, juiz ruinzinho, meio que simultaneamente a torcida se lembrou do mantra da época que enaltecia o centroavante Chicão, que costumava fazer gol até de bunda. Era um Nunes melhorado, acabou se tornando o artilheiro do campeonato naquele ano e, por consequência, nosso santo padroeiro.

“CHICÃÃÃO… CHICÃÃÃO… EÔ-EÔ-EÔÔÔÔÔ…”

Liminha entrou no clima e gritava a plenos pulmões o canto da torcida, mas notei que me olhava de um jeito meio sacana. Eis que a torcida de repente se cala, Liminha não percebe e entrega o jogo:

“CHICÃÃÃO… CHICÃÃÃO… FELADAPUTA, CABEÇUDO E ORELHÃÃÃÃO…”

Não deu para não notar, dada a eloquência que o palhação imprimiu ao canto de guerra. Na época não havia tanta violência nos estádios, mas achei melhor catar o indivíduo pelo cangote e cair fora do estádio, porque a galera já estava olhando meio atravessado e nos apontando o dedo no melhor estilo “aqueles dois ali”. A traquinagem do meu amigo me impediu de ver o gol de empate aos 40 do segundo tempo. Marcado por quem? Chicão!

Episódio 2 – Mineirão, 1992 – Atlético-MG 1 x 1 Flamengo

Fui designado para um trabalho de auditoria externa em Belo Horizonte, em companhia de alguns colegas do Rio de Janeiro. Um deles, meu bródi Ricardo Rossi, flamenguista doente (com o perdão da redundância), me arrastou para o estádio naquela noite que tinha tudo para ser tranquila.

O Mineirão é possivelmente o único estádio no mundo onde se come churrasco com feijão tropeiro e espetinho de queijo, então eu não estava muito em condições de reclamar da vida. Mas, além de ter que ir assistir ao jogo do Flamengo, ainda tive que ceder à insistência do Rossi e nos juntamos à mulambada que tinha ido do Rio até BH em cerca de 40 ônibus fretados.

Joguinho chato, um gol de pênalti e outro de falta, achei estranho que perto dos 40 do segundo tempo a polícia veio chegando e nos cercando com cordas. Um dos policiais nos informou que havia motivos para acreditar que a torcida do Atlético nos esperaria lá fora para uma confraternização do tipo que não gostamos, e que a determinação do comando era que permanecêssemos nas arquibancadas até que as coisas se acalmassem no solo.

Beleza, acabou o jogo e aceitamos o cárcere privado como alternativa para fugir da violência. Mas parece que faltou a polícia combinar com a administração do estádio, porque após cerca de 40 minutos todas as luzes foram apagadas. Maior breu. Coincidência ou não, naquele momento começou a operação sai-fora-mulambada, os policiais nos orientando na medida do possível, e a pergunta que eu me fazia a cada 15 segundos era “o que é que eu tô fazendo aqui?”.

Ao nos aproximarmos da saída notamos que a torcida do Galo pode ter todos os defeitos, mas demonstrou ser muito paciente: estavam todos lá, nos esperando. O contingente policial estava longe de ser suficiente para dar conta da batalha campal que se anunciava, eu olhei para o Rossi e propús que usássemos de toda nossa valentia para avançar em direção à retaguarda. Assim fizemos e, por sorte, encontramos um táxi desocupado saído sabe-se lá de onde. Não me lembro de termos aberto as portas, mas de repente já estávamos lá dentro em direção à Rua Rio de Janeiro, nosso porto seguro. Notei, ao chegar, que o Rossi esteve tão focado em tirar o time que se esqueceu de tirar a camisa do Flamengo. O tempo todo eu corri ao lado de um alvo móvel.

Passados tantos anos, vez por outra reencontro esses colegas-amigos e nos divertimos relembrando essas passagens a que o trabalho direta ou indiretamente nos impôs. A maioria acha que daria um livro.

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A VERSÃO DELA

Livro CarlenaRecebi pelo correio há alguns dias o livro da gaúcha Carlena Weber, com o sugestivo título ‘A minha versão da história’. Tá, não se deve julgar um livro pela capa nem por qualquer outra característica subjetiva, mas uma miscelânea de sorrisos, caras e bocas com um título que passeia entre o instigante e o irreverente já representa certa vantagem, quando o objetivo é chamar a minha atenção.

Tomei conhecimento da obra por meio de comentário em rede social feito pelo Evandro Bonocchi, paratleta pra lá de radical que disse ter se deliciado com os relatos da moça. De imediato procurei saber como adquirir o livro, entrei em contato com a autora e esperei tipo uma semana para, enfim, descobrir o que tinha deixado meu amigo tão emocionado. 

O enredo é punk porque, na verdade, trata-se de autobiografia que se inicia com algumas lembranças esparsas da adolescência um tanto normal de Carlena, mas o ponto central e início real da ‘trama’ ocorre com um desastre automobilístico horroroso, com consequências para toda a vida que têm em comum a palavra perda: seus pais, seu primo com a namorada e seus movimentos do pescoço para baixo.

Um prato cheio pra pieguice e coitadismo, né? Pois é, mas não esperem isso no livro.

Como num grito do tipo ‘eu sou normal’, Carlena discorre sobre as diversas fases por que passou nos primeiros momentos, desde o inevitável período de luto até a percepção da possibilidade de levar uma vida ativa e saudável sobre rodas, passando pelos perrengues das diversas adaptações a que teve que se submeter. A narrativa é por vezes crua, chocante e corajosa, há momentos em que ela expõe situações íntimas em tese constrangedoras, mas a leveza de sua pena é de tal maneira onipresente que acaba por incluir o leitor na lista de seus melhores amigos.

Alguns trechos com páginas pretas e letras brancas integram o livro, deixando uma sensação de parênteses para uma conversa ao pé do ouvido. Imagino que tenham sido pinçados de um diário ou caderno de anotações que Carlena tenha decidido incluir na publicação. O efeito, às vezes didático, outras vezes assumindo o caráter de confidência, dá um molho à narrativa e não permite que descambe para tecnicismos que poderiam tornar a leitura cansativa.

Foi gostoso acompanhá-la nas duas visitas que fez ao hospital da rede Sarah, em Brasília, e parece que foi ali que ela achou seu norte, que observou nos outros a naturalidade de ser uma pessoa com deficiência. O tempo aos poucos foi lambendo suas feridas, até que rolou um estágio e experimentou a aventura de trabalhar num ambiente com poucas adaptações e diversos desafios. 

Então, lembrou-se da faculdade que tinha abandonado após o acidente. Por que não? Seu acanhamento inicial rolou escada abaixo e ela não só concluiu a graduação como fez uma pós, conseguindo permanecer na área escolhida.

A tentação de contar a história é grande, mas o direito de fazê-lo é exclusivo da autora. Acho que até já abusei um tantico, então deixo o resto por conta da curiosidade de vocês. O livro pode ser adquirido via site da Livraria Cultura ou, para quem gosta de exemplares autografados, o canal é o perfil da gaúcha no Facebook, bastando digitar Carlena Weber e fazer as tratativas inbox.

Como toda pessoa ‘normal’ eu tenho minhas esquisitices: quando em casa só leio deitado na rede, em honra aos meus 50% de sangue pau-de-arara, e ao terminar a leitura de um livro de que tenha gostado muito eu sinto um misto de saudade e gratidão. Doideira? E se eu arrematar revelando que antes de colocar o livro na ala de lidos da estante eu costumo dar um beijo nele?

À parte alguns pecadilhos editoriais, que poderiam ter sido evitados mediante uma revisão de maior qualidade, A Minha Versão da História é um livro às vezes divertido, às vezes terno, outras tantas vezes chocante, mas sempre prazeroso. Uma história cuja protagonista desconstrói (destrói?) conceitos, valores e paradigmas.

Carlena, eu beijei você.

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O MENINO DE DONA JACIRA

Dia desses (aliás, madrugada dessas) fui apresentado a um carinha que eu já sabia existir, mas nunca tinha prestado atenção. Após ouvir suas opiniões e conceitos sobre a vida em sociedade, ficou aquele encantamento que me levou a pesquisar mais sobre ele.

Meu contato com Emicida se deu de maneira abrupta por meio de um debate promovido por Serginho Groisman em seu programa. De repente o garoto se mostra um crítico feroz do nosso racismo que não ousa mostrar a cara, apesar de mostrá-la o tempo todo. Após um gancho deixado pelo ator Marcos Caruso, ele solta o verbo:

https://youtu.be/OUzBGvNpI38

O menino, nascido Leandro, também tem lá suas opiniões um tanto incômodas quando o assunto é preconceito sócio-econômico e funcionamento das instituições.

Chamou minha atenção de maneira mais contundente a forma liricamente crua encontrada para homenagear sua mãe, dona Jacira.

Não me sai da cabeça a frase contida nessa música, “vai dar a maior treta quando disser que vi Deus; ele era uma mulher, preta”. 

O Youtube tem alguns exemplos do trabalho do carinha, então deixo a dica de observar na rede e, caso entenda justo, compre o CD ou DVD. Afinal, ele vive disso né?

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JUÍZES

Entre 2008 e 2011 eu me submeti a um tratamento pesado contra o até então bem escondido vírus da hepatite C. O uso de antivirais poderosos como interferon e ribavirina implicou um monte de efeitos colaterais como anemia, momentos de intensa fadiga, imunodepressão, emagrecimento importante e uma dor no conjunto cabeça-tronco-e-membros que não cessava.

Resisti e continuei trabalhando, até que minha gerente determinou que eu tirasse licença médica, porque minha teimosia não estava ajudando nem a mim nem à empresa. Acabei cedendo à determinação, e o que imaginei que seriam 25 dias de licença acabou se transformando numa ausência superior a um ano. Nesse meio tempo continuei levando minha vida, convivendo com minha família, lendo, escrevendo e tocando meus instrumentos.

Em determinada ocasião fui convidado a tocar violino numa solenidade da empresa, me parece que alusiva ao dia das mães. Topei, só não sabia que isso iria gerar tanta conversinha paralela por parte dos justiceiros de plantão, que tinham decretado que quem sai de licença médica precisa necessariamente permanecer 24 horas na cama, de preferência em coma e respirando por aparelhos.

Após esse episódio aprendi que empatia é uma coisa rara feito filho de quenga chamado júnior e, em especial, que analisar as situações de forma precipitada e superficial pode gerar algum dano até a quem não precisa de inimigos.

Este gancho é para comentar um vídeo que assisti numa rede social, que denuncia uma suposta funcionária da prefeitura de São Bernardo do Campo, que teria passado cerca de um mês no Egito durante período de licença médica. As inferências instantaneamente viram verdades absolutas, a ‘reportagem’ fala que a viagem foi bancada por dinheiro público, que ela estava recebendo sem trabalhar, etc, etc. Um mais iluminado que os outros a chamou de ‘biscate’ na área de comentários.

Não tenho certeza se o vídeo foi de fato produzido pela Rádio Bandeirantes de São Paulo, ou se foi uma forma de dar ares de seriedade à ‘reportagem’. O fato é que se trata de uma ‘peça jornalística’ sem data, que expõe a mulher ao citar seu nome completo, duvida publicamente de sua honestidade e, ainda, reproduz o que seria uma tentativa de entrevista por telefone.

Consultei os ácaros aqui de casa e observei que até eles sabem que salário recebido por servidor público não é dinheiro público; já foi, porém ao ser depositado na conta do servidor deixou de sê-lo porque passou a ser bem privado. Eles também sabem que só recebe proventos decorrentes de licença médica quem contribui para o órgão previdenciário, ou seja, é um direito que assiste ao segurado.

Mas o que vale é a versão, o fato a gente vê depois. O importante é que o vídeo já ultrapassou a barreira das 100.000 visualizações. 

Claro que é sempre possível que pessoas cometam irregularidades, fraudes e outros crimes contra a administração pública, mas não é isso que entendo estar em jogo.  Nem toda licença médica impede as pessoas de viajar, seja para o Egito ou para a baixada fluminense, então até prova em contrário ela não cometeu crime algum. Consequentemente, não cabe a jornalistas ou a quem quer que seja se dirigir ou referir a ela de forma desrespeitosa ou acusatória. Se sabem de algo concreto, e detêm as provas, que façam a denúncia junto às autoridades, não aos juízes do Facebook.

Juizes do facebook

Por enquanto, se alguém cometeu algum crime foi quem a chamou de biscate.

É sintomático o destaque que o vídeo dá ao fato de ela ter sido candidata pelo PT, deixando transparecer o real objetivo da ‘reportagem’. Ontem a turma da situação publicou um post ‘denunciando’ a jornalista Danuza Leão de preconceito contra os pobres, o que automaticamente faz dela uma coxinha. Anteontem o outro lado publicou matéria requentada falando sobre o suposto apoio do Planalto à indicação do tal Gim Argello para assumir cargo no TCU, coisa de petralha. Eu resolvi já há algum tempo que não iria mais me aborrecer com essa briguinha idiota entre o bem e o mal, até porque esse maniqueísmo cretino só destrói. Mas no caso desse vídeo resolvi me manifestar, porque de certa forma o silêncio pode retroalimentar a crueldade.

Se o tal vídeo foi de fato produzido por jornalistas, agradeço aos céus por eles não terem se decidido pela medicina.

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EMPOBRECIMENTO ILÍCITO

Ainda me resistem na memória as doces lembranças dos oito anos seguidos em que meu contracheque sofreu de imutabilidade crônica, nos idos daquela versão de tripanossoma cruzi de beição, também denominada governo FHC.

Eu vivia com medo da síndrome de Estocolmo, parecia que a qualquer momento poderia passar a achar normal ou até mesmo gostar de ser esfolado vivo, porque tinha a consciência de que integrava a turma conhecida como a parte mais fraca da corda. Era batata: se a inflação aumentava, e ela sempre aumentava, congelem-se os salários; se o superávit primário não era alcançado, congelem-se os salários; se o beição engravidar uma repórter da Globo, pau nos salários. Nunca me perguntaram o que eu achava daquilo, talvez porque fossem pessoas finas e diferenciadas que não gostavam de palavrão, mas eu dizia assim mesmo. Ou nos artigos que escrevia, ou na digitação da urna. A vingança era meu rivotril.

De repente, não mais que de repente, eis que me livro do encosto da Sorbonne e sou contemplado com sucessivos reajustes acima da inflação concedidos por Luiz Inácio, a quem hoje carinhosamente chamam de ‘nove dedos’, numa demonstração de apreço, educação e respeito às pessoas com deficiência. A economia ia bem.

Mas o sinal amarelo acendeu semana passada, quando o ministro – aquele do Bradesco, me explica essa, Dilma! – começou a falar em aumentar a arrecadação. Meu brioco, já sensível e escolado por seus profundos conhecimentos de história recente, logo matou a charada: não vão aumentar a arrecadação, só diminuir custos. Ora, o ministro trabalhou um tempão no FMI e também ocupou altos cargos no governo FHC, deveria eu esperar uma mentalidade heterodoxa?

Não deu outra: já anunciaram a proposta de adiar, de janeiro para agosto ou outubro de 2016, o reajuste dos funcionários públicos, provavelmente vão botar ABS no salário mínimo e as aposentadorias só vão subir se for no telhado.

Eu até poderia sugerir, para aumentar a arrecadação, que algum iluminado do Planalto estudasse formas de dar um fim na isenção fiscal das igrejas e do pagamento de dividendos de empresários, além de passar a taxar as chamadas grandes fortunas. Poderia, não fosse a consciência de que o Congresso Nacional foi tomado de assalto pelas bancadas conhecidas como BBB: da bíblia, do boi e da bala, que estão longe de atitudes patrióticas, existem para defender seus próprios interesses. Tem também uma filial da FIESP dando ordens por lá.

Essa grita contra a ressurreição da CPMF tem razão de ser: a arrecadação do chamado imposto do cheque será suficiente para evitar o aumento das alíquotas de imposto de renda pessoa física. Mas para quem está mal intencionado a CPMF é de todo danosa, porque não há como sonegar. Então, para a alíquota entre 0,2% proposta pelo governo e a de 0,38 pedida por governadores, quem recebe R$ 10.000,00 de salários por exemplo pagará por mês R$ 20 e R$ 38, respectivamente. Agora, quem leva R$ 500 mil e sonega tudo (porque sonega mesmo) a CPMF é considerado um atestado de incompetência.

Meu consolo é que, se Dilma cair, quem assume é o Temer ou, quem sabe, o Cunha.

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CASA NOVA

Depois de passar um bom tempo me sentindo um imigrante na fronteira da Hungria, resolvi chutar o balde e mudei de hospedagem. Não dava mais para tolerar travamentos crônicos que me impediam de postar por um monte de dias, sem receber do UOLHost as respostas e providências de que me achava merecedor. Até porque a hospedagem nunca foi gratuita.

Assim, após pesquisas com amigos que conhecem do riscado optei pela Locaweb, para onde migrei minhas doideiras, templates, widgets, plugins e comentários. 

O começo está bastante animador, eu me sinto respeitado e a estrutura do atendimento oferecido pela empresa me dá a tranquilidade que não tinha na hospedagem anterior. Como foi possível fazer a migração com pouca perda, para a galera que aprecia meus delírios não haverá mudança alguma para acessar o blog.

Minha porção majoritária e essencialmente otimista me convenceu de que esta mudança não será como as que já fiz de operadora de telefonia celular, quando saí da merda para cair no cocô. Oremos.

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EU, ADÚLTERO

Talvez pelo fato de minha mãe nunca ter feito o estilo carolão e meu pai gostar mesmo é de uma gelada, eu não sou nada afeito aos bolodórios de padres, pastores e afins. Claro, fui batizado, fiz a primeira comunhão e tudo aquilo que o senso comum da ‘maior nação católica do mundo’ exigia, mas desde o início achava bobo aquele senta-levanta-ajoelha, mentia mais que político nos confessionários e demorei para perceber que aquilo que o padre botava na boca dos outros não era sonrisal.

Y así la nave se fué: cresci largadão no quesito religião e nem de longe considero que tomei algum prejuízo. Pelo contrário, na minha humilde opinião religião faz mal pra cacete. Umas mais, outras menos.

O irônico é que no primeiro casamento vivi cercado de espíritas e agora, há 17 anos sob nova direção, adotei uma família católica praticante. Vez por outra deixo escapar uma opinião meio off-topic, mas no geral consigo respeitar a crença da galera, até porque gosto muito de todos e jamais cometeria uma agressão de forma consciente.

O assunto religião me persegue: recentemente o papa Francisco (sou fã do carinha) abordou uma questão que minha ignorância eclesiástica não me permitiu sequer desconfiar, que é a posição da Igreja acerca dos divorciados. Eu sou um deles.

Segundo o evangelho de Mateus, o casamento é como diamante ou mercúrio em corpo de garimpeiro: para sempre. Então, a Santa Sé defende que quem se separa e contrai novas núpcias está em situação de pecado grave de adultério, o que impede de comungar, fazer penitências, batizar um bacuri e coisas do gênero. Particularmente eu até acho um pouco de graça, mas um detalhe me incomoda: a Igreja entende que quem se casa com uma pessoa (argh!) divorciada também comete pecado de adultério. Eliana entrou de gaiata nessa.

Isso tudo por causa de uma passagem bíblica: “Que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19, 6). 

Resolvi partir para pesquisas sobre o assunto, até porque estão falando de mim pelas costas. São Google me deu uma mãozinha e encontrei três sites que falam basicamente a mesma coisa, dois mantidos por entidades eclesiásticas e o outro por um padre. Confesso que fiquei um tanto atônito com o conteúdo dos textos e, principalmente, pelas manifestações bem idade média por parte dos chamados fiéis. Extraí alguns trechos:

“Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar, explica Bento XVI (Sacramentum caritatis, 29).”

“A Igreja não pode dizer algo diferente do que seu Mestre disse: “Todo aquele que despede a sua mulher e se casa com outra, comete adultério. E quem se casa com a que foi despedida também comete adultério””

““Que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19, 6). Contrair uma nova união conjugal (segundo casamento civil ou simples concubinato) quando a pessoa se divorciou significa negar a indissolubilidade sagrada do matrimônio e supõe estar em pecado grave, o que impede de comungar.”

“A razão pela qual os casais ditos ‘em segunda união’ não podem comungar é simplesmente porque vivem em situação de pecado mortal – geralmente público, continuado e impenitente.”

A cereja:

“A reconciliação sacramental não é possível enquanto o primeiro cônjuge não falecer (fato este que acaba com a vida em comum). Inclusive no caso de que que o novo casal receba a graça de continuar até a decisão de separar-se, ou pelo menos se a separação não for indicada (por exemplo, pelo bem dos filhos), é possível viver uma amizade espiritual, renunciando à intimidade própria dos esposos.”

Pensei até em pedir ajuda aos universitários sobre o significado de renunciar à intimidade própria dos esposos, mas acabei deduzindo que se trata de adotar na cama a posição bunda com bunda. Destaque para o absurdo da sugestão de separação para sanar nossa ‘situação de pecado mortal’. Fora de cogitação.

Pude observar nas entrelinhas dos textos e comentários que a atuação do Papa Francisco não é muito bem-vista pela ala conservadora, que se limita a engoli-la disfarçando a careta. Lógico, as cabeças cobertas por halos jamais falarão do papa o que o Collor falou do Janot, mas a impressão é que tá duro de deglutir suas ideias que quebram paradigmas milenares. A última do Chicão, em entrevista ao periódico argentino La Nación:

“No caso dos divorciados que voltaram a casar, perguntamo-nos: O que fazemos com eles? Quais são as portas que podemos abrir-lhes? E essa foi uma inquietação pastoral: Então vão receber a comunhão? Dar-lhes a comunhão não é a solução. Somente isso não é a solução, a solução é a integração. Não estão excomungados, é verdade. Mas não podem ser padrinhos de batismo, não podem ler a leitura na Missa, não podem dar a comunhão, não podem ensinar catequese, há cerca de sete coisas que eles não podem fazer. É como se tivessem sido excomungados! Precisamos abrir um pouco mais as porta”.

“Por que não podem ser padrinhos? ‘Não, olha, que testemunho vão dar ao afilhado’. Testemunho de um homem e uma mulher que lhe digam: ‘Olhem, querido, eu errei, eu patinei neste ponto, mas acredito que o Senhor me ama, quero seguir o Senhor, o pecado não me venceu , mas eu sigo adiante’. Mais testemunho cristão que esse?”

“Quando vem um destes políticos corruptos que temos para ser padrinho e está bem casado pela Igreja, você o aceita? E que testemunho vai dar ao afilhado? Testemunho de corrupção? Ou seja, temos que voltar a mudar um pouco as coisas…”

Às vezes desconfio que Torquemada tem, ainda hoje, um monte de viúvas saudosas.

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PRA QUEM GOSTA


Fui apresentado a esse vídeo ontem ou anteontem, produzido no já manjado estilo ‘bora esculachar, que é chique e tá na moda’. De início estranhei tratar-se de um apêndice eletrônico da revista Super Interessante, que normalmente se ocupa de assuntos outros. Porém, como a pátria-mãe é a Editora Abril, fica explicado o DNA que caracteriza a Veja. Tudo em casa.

É claro que concordo que a taxa de juros remuneratórios do FGTS, de 3% ao ano, poderia empatar com os 6% da caderneta de poupança. Mas o vídeo peca pelo equívoco – que mais parece saído de um saco de maldades, já que equívocos são geralmente involuntários – de colocar o FGTS no mesmo patamar dos chamados ativos financeiros. Até os ácaros lá de casa, pelo menos os honestos, sabem que o FGTS é um ativo social, jamais financeiro ou especulativo.

Não tenho a pretensão de dar aula para o jornalismo da Abril, que conhece a verdade mas de vez em quando aparece com essas licenças poéticas. Mas vale fazer alguns esclarecimentos.

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi idealizado como regime alternativo à estabilidade no emprego, assegurada pelo art. 157, XII, da Constituição de 1946 e regulada pelos artigos 492 a 500 da CLT. O antigo regime de estabilidade era muito criticado, pois vivia sendo sabotado pelos empregadores, que costumavam dispensar os empregados em vias de completar 10 anos de serviço na mesma empresa para, logo após, readmiti-los. Naquela época já havia os espertinhos.

Além de constituir um pecúlio ao trabalhador para o momento de desligamento do emprego, também tem seus recursos utilizados pelos programas sociais que buscam oferecer o acesso à moradia popular, além de constituir uma das fontes de financiamento das obras de saneamento básico.

Quem conhece um mínimo de finanças sabe que em todos os setores da economia é imperativo o equilíbrio financeiro. Isto significa que não se pode pagar mais do que se recebe, sob pena de simplesmente falir. Então, é importante lembrar que os financiamentos imobiliários para a população de baixa renda e os recursos aplicados no saneamento são feitos a juros baixos. Por consequência, não é inteligente supor que a remuneração do FGTS ocorra como se fosse uma aplicação em ações da AMBEV.

Mesmo assim, não podemos comemorar a situação do Brasil, porque o déficit habitacional é grande e o percentual da população atendida por água encanada e esgoto sanitário ainda é muito baixo. Basta dizer que 34 milhões de brasileiros ainda não têm acesso a água encanada e apenas 38,7% dos esgotos gerados são tratados, segundo dados de 2012 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento-SNIS.

As aplicações dos recursos do FGTS exercem, ainda, um papel importante na saúde e na economia. Dados extraídos do Estudo “Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento Brasileiro”, realizado em 2014 pelo Instituto Trata Brasil/CEBDS, indicam que somente em 2013 foram notificadas pelo SUS cerca de 340 mil internações por infecções gastroinstestinais, ao custo estimado de R$ 355,71 por paciente. O mesmo estudo avalia que se 100% da população tivesse acesso à coleta de esgoto, havia uma redução de quase 75 mil internações, além de uma redução de 15,5% das 2.135 mortes ocorridas naquele ano.

É claro que a galera que faturou 2.785% em ações da AMBEV se preocupa muito com pobre morrendo, né?

De quebra, em 2012 o setor de saneamento gerou 726 mil empregos diretos, indiretos e de efeito renda em todo o país, sendo 210 mil diretos nos serviços e 516 mil gerados pelos investimentos.

Será que ainda acham que o FGTS precisa ser um ativo financeiro-especulativo?

Se os números atuais já não são uma Brastemp, como estariam as coisas hoje em prevalecendo essa mentalidade digna de saneamento básico, que só pensa em especulação? É desperdício pensar em proporcionar casa e saúde para pobre? É bom lembrar que saneamento básico é para todos.

Nos meus 32 anos de trabalho na Caixa Econômica, boa parte lidando direta ou indiretamente com o FGTS, testemunhei dezenas de ataques ao fundo de garantia, a maioria (senão todos) com intenções inconfessáveis. Foram diversos os botes de grandes bancos querendo abocanhar essa mina de ouro, que arrecadou em 2012 R$ 83 bilhões.

Então, é de se recomendar cautela com informações tendenciosas que são disseminadas na grande imprensa (que no mais das vezes é movida a canalhice e interesses corporativos), e manter um pé atrás, talvez os dois, quando surgem vídeos simplistas como o que acabamos de ver. 

Duvido que o vídeo tenha sido produzido com boas intenções.

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GENTE TRISTE

Comecei a perceber a proliferação desse tipo de bicho há alguns anos, principalmente aos domingos. Pensei que se tratavam apenas das chamadas viúvas do Senna, mas aos poucos a coisa foi ganhando contornos mais dramáticos. Nos espaços destinados à opinião dos leitores oferecidos por jornais e blogs, o que mais se lia era a expressão ‘pé de chinelo’, uma espécie de corruptela para Barrichello. Parecia que as pessoas não perdoavam o Rubinho por não ser tão bom quanto o Senna, aquilo foi crescendo até virar antipatia, e daí para a má vontade foi um pulo. Nem adiantava eventualmente ganhar uma corrida, era pé de chinelo e pronto.

Passou-se o tempo e a artilharia pesada migrou para o Massa. Como ele precisava de um apelido depreciativo, alguém resolveu que ele era a cara do Zacarias, e assim passou a ser chamado pelos membros do clubinho fechado. Não interessava se o jogo de equipe era algo praticado desde sempre (e que fez a alegria do Senna muitas vezes), o Zacarias tinha que voltar para o kart, o autorama ou o videogame, porque Fórmula 1 não era para ele.

Enquanto esse objeto de estudo sócio-psico-comportamental se restringiu às ondas televisivas e ao asfalto dos autódromos, era aquela coisa bobinha de gente estranha e insatisfeita consigo mesma.

Mas eu fui ficando assustado mais recentemente, de uns anos para cá, porque parece que os Gremlins beberam muita água e viraram monstrengos onipresentes e incômodos.

Além de especialistas em corridas, mesmo sem nunca ter entrado sequer num fusca envenenado, passaram a se achar experts também em política, economia e ética. Ficava cômica a cara de gênio que faziam ao dizer “eu li na Veja…”, sempre encerrando com uma frase de efeito que era facilmente identificável nos meios marrons dos hebdôs.

E aí o caldo entornou: essa turma que não se tolera achou que nós outros temos que tolerá-la. Ao humor putrefato juntou-se uma pitada de ausência de espírito, uma dose cavalar de intolerância com quem pensa diferente e a certeza de que sempre foram senhores da razão.

Pronto, nem precisou de catupiry.

De quebra ainda passou a rolar aquela mania feia de escolher o motivo da revolta, o objeto da indignação. Como um dos ingredientes era a parcialidade, obedecem cegamente a norma de jamais voltar-se contra seus iguais, mesmo que isto represente aguentar uma trolha em tese incômoda. Também não se permitem ler algo fora do que recomenda a cartilha das pessoas de bem, porque gente diferenciada tem que manter a compostura.

É inegável que os padrões são rigorosamente observados, o que garante a qualidade naquilo a que se propõe. Para melhor aplicação dos ideais da turma, deixo algumas instruções aos neófitos: o ideal é negar qualquer vestígio de ponto positivo se a iniciativa é do adversário que na verdade é inimigo mortal, disseminar nas redes sociais tudo o que for bombástico e tiver aparência de fim de mundo, cuidando para que a replicação chegue ao maior número de pessoas. Assim se consegue uma melhor quantidade de seguidores-distribuidores, que não são propriamente atentos, não se preocupam com a veracidade das informações porque já se habituaram com o discurso de que aquela fonte é segura ou foi replicada por alguém de confiança. De vez em quando vai aparecer uma notícia-que-não-querem-que-você-saiba, dizendo que a partir de agora só nos aposentaremos com 105 anos de contribuição e 160 de idade, que o filho do ministro é dono da NASA e que Elvis não morreu, mas vive de forma nababesca numa ilha isolada às custas do governo brasileiro, dos nossos impostos! Não se esqueça de jamais duvidar.

Recomenda-se seguir os dogmas da igreja dominante, torcer para o time certo, ter a orientação sexual considerada normal e, de preferência, acreditar cegamente que o Brasil foi descoberto somente em 2003. 

Se, somado a isso, ainda sobrar um tempinho para o patrulhamento sobre o vizinho, estará garantido ao Brasil um degrau na galeria dos lugares mais chatos pra se viver. 

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UM CHUTE NOS BAGOS

Lá nos idos de 2000, mais especificamente em 19 de dezembro, foi aprovada a Lei 10.098/2000, que estabeleceu diretrizes, direitos e obrigações no tocante à questão da acessibilidade no Brasil. Como o público mais diretamente beneficiado por essa lei tem um prestígio invejável, o decreto que a regulamentou demorou apenas quatro anos para ser publicado e levou o número 5.296/2004.

Lei e decreto detalham os vários tipos de deficiência (física, sensorial, mental) e definem os conceitos de barreiras, acessibilidade, edificações e logradouros públicos, privados e de uso comum e as formas com que, a partir de sua publicação, serão cumpridas as determinações estabelecidas a fim de proteger a incolumidade física e o direito à cidadania plena das pessoas com deficiência.

Existem dispositivos legais de âmbito estadual e alguns até municipais, mas a lei e o decreto federais de que falo são, a princípio, as referências para quem trabalha ou se preocupa com a questão da acessibilidade em nossas ruas, prédios e praças. São nossas cartilhas. 

Fazendo um resumo bem mequetrefe, ficou estabelecido que rampas, elevadores, pisos podotáteis, instalações sanitárias adaptadas, comunicação visual, dentre outras exigências, deveriam passar a figurar como itens obrigatórios nos prédios públicos e mesmo nos privados de uso comum, como escolas, faculdades, estádios, prédios comerciais, etc. E tem os detalhes:

TAC Art 15

TAC Art 15 Parágrafo 2o

Destaque para o artigo 24 do Decreto 5296/2004, acima, que trata especificamente da acessibilidade nos estabelecimentos de ensino públicos ou privados.

Pois bem: no ano passado, 14 anos após a publicação da Lei 10.098/2000 e 10 anos após o difícil parto do decreto que a regulamenta, alguém em São Paulo cismou que algo não estava legal. Chegou-se à conclusão de que as escolas públicas do estado estavam pouco se lixando para a Lei da Acessibilidade, fato este que tinha como consequência direta a exclusão inconstitucional de pessoas com deficiência.

Felizmente, quando tudo parecia perdido, eis que o assunto foi transferido para os guardiões da Lei do Ministério Público estadual. Agora sim!

Quer dizer… peraí… diabeísso?… coméquié memo?

A solução encontrada, provavelmente após exaustivos debates, foi a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta, firmado entre o MP/SP e representantes do Estado de São Paulo, cuja decisão final, ‘justa e contratada’, é a seguinte:

TAC Prazo 15 anos

SEE é a sigla de Secretaria Estadual de Educação.

Aí me bateu a velha mania de analisar, com os olhos críticos do velho auditor que ainda não morreu em mim, essa cagada em forma de TAC.

Apelemos para a matemática: o Decreto 5.296 foi publicado em 2004, o que deu de saída uma folga de quatro anos para ajuste de quem, por incompetência ou desconhecimento, ainda não tinha adotado medidas capazes de eliminar as barreiras arquitetônicas e atitudinais que emperram o exercício da cidadania. Uma vez publicado, o decreto resolveu conceder mais três anos, no mínimo, para que os gestores (que nada haviam feito até então) finalmente investissem em educação inclusiva. Não percam a soma: 2000+4+3=2007. Já estávamos em 2007 e nada de cumprimento da lei.

O tempo passa, o tempo voa, e os gestores públicos de merda continuam numa boa. Para estupefação ampla, geral e irrestrita, sete anos após o prazo final estabelecido criou-se o tal TAC, que serviu para premiar a omissão e o descaso, além de, é claro, condenar as pessoas com deficiência a mais um tempinho de obscurantismo compulsório. Como se estivessem precisando dessa mãozinha de quem deveria defender seus interesses. Aliás, as declarações à imprensa, tanto do MP/SP quanto de setores do governo de SP, foram pérolas à parte:

“Esse TAC tem em vista o ser humano como valor fundamental” – Procurador-Geral de Justiça, Márcio Elias Rosa.

“Não há defesa da sociedade senão na perspectiva da pessoa humana” – Procurador-Geral de Justiça, Márcio Elias Rosa.

“O Estado tem obrigação de garantir, com trabalho planejado, que as crianças da rede pública de ensino tenham dignidade em sua educação” – Herman Voorwald, Secretário de Educação. 

“Estamos buscando atender a legislação oferecendo condições de dignidade aos alunos da rede” – Maria Elizabete da Costa, Coordenadora de Gestão da Educação Básica, da Secretaria de Educação.

“Trabalho com sinergia para a construção de caminhos acessíveis” – Secretária Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Linamara Batistella.

Impressão chata de que o assunto foi tratado por principiantes. Na vida real, longe de câmeras e holofotes, o que veremos serão mais 15 anos de omissão governamental para, quem sabe, novo TAC e novo prazo. Nos dizeres do advogado e jornalista Adelino Ozores sobre o assunto, “(…) brincam de “fazer educação”, as pessoas com deficiência ficam fora das escolas, das universidades e são vistas como desinteressadas pela sociedade. Empresários as apontam como sem qualificação para o emprego e pedem que mudem a lei de cotas. Estão brincando com vidas e com a Constituição, que garante educação para todos, ratificada pela Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência”.

Não ficarei surpreso se surgir a notícia de que pediram desculpas ao governador pelo incômodo.

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APNEIA

Lá se vai um bom par de décadas que dedico minhas noites à arte de roncar. Em maior ou menor grau, com mais ou menos decibéis, meu estilo é o ronco em si bemol na clave de fá, aquela coisa parecendo um tenorzão soprado por um hipopótamo.

Eu ainda estava sob antiga direção quando procurei ajuda médica. Tive que me submeter a um exame dos infernos chamado videolaringoscopia, em que a profissional me fez assumir a função de artista de circo e arregaçou minha garganta com uma cânula metálica de uns 30cm, com uma câmera na ponta para filmar a minha beleza interior.

Naquele momento eu não tinha muita diferença para um ganso francês sendo preparado para o fornecimento do foie-gras.

foie com texto

Quase a mesma coisa, né?

A médica ainda achou de testar a minha afinação. Com aquele tubo metálico cutucando o âmago do meu ser, pediu para repetir a escala de dó de trás pra frente. Só me arrancou grunhidos.

O veredito: hipertrofia e flacidez de úvula que, durante o sono, obstrui a passagem do ar e provoca o concerto para moto-serra. Isto foi há mais ou menos 20 anos, a doutora sugeriu uma cirurgia meio punk no meu pós-lingual e eu nunca mais dei as caras por lá.

Aí iniciei o processo de engorda de que falei no post Sanfona. A consequência mais marcante disso foi um aumento considerável dos episódios de apneia obstrutiva, que passou a me acordar madrugada adentro. Um saco. Achei melhor procurar ajuda médica de novo, e uma clínica especializada em distúrbios do sono caiu bem.

Foi a primeira vez em quase duas décadas que dona Eliana não teve o privilégio de me botar pra fazer naninha. Dormi na clínica, onde fui monitorado a noite toda via eletrodos que não contei, mas deviam ser uns 40 ou 50 espalhados por cabeça, tronco e membros. De vez em quando eu olhava meio de lado e tentava evitar o pensamento ‘vai que çapoha dá choque…’.

Após cerca de uma semana saiu o resultado da farra, que disse mais ou menos o seguinte: dos 386 minutos dormidos, houve 366 despertares, com o índice de distúrbio respiratório em 58.8, seja lá o que isso signifique. Houve momentos prolongados do que me pareceu ser uma espécie de cianose, com 40% de saturação da oxi-hemoglobina. Não fora eu um cara pra lá de otimista, diria que fudeu.

Até prova em contrário essa meleca não tem cura, apenas paliativos. Tudo indica que terei que usar uma máscara chamada CPAP, um troço mais feio que o Bolsonaro e que não tenho certeza se terei coragem de usar em público. Pelo menos minha médica disse que resolve tanto o ronco quanto a apneia, o que quer dizer que eu terei mais disposição durante o dia e Eliana sorrirá feliz e aliviada à noite.

Ela disse também que a má qualidade do sono e essa deficiência de oxigênio no sangue prejudicam bastante as atividades durante o dia, provocam sono e afetam também as atividades cerebrais e cognitivas. 

Finalmente descobri por que demorei quase 20 minutos pra dar aquele xeque-mate no Kasparov.

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TERCEIRO EU, DEPOIS O SAMBA

Fui pego de surpresa quando um malandro federal falou na televisão que o Projeto de Lei da terceirização visava organizar o setor, regulamentar as relações de trabalho e gerar empregos no âmbito das empresas terceirizadas. Quer dizer, então, que tudo o que vi nas últimas décadas foi na banguela, sem uma lei? A CLT não basta?

Claro que minha burrice não chega a tanto, eu sabia que era mais uma mentira. Durante pelo menos meus últimos 20 anos como bancário da Caixa Econômica Federal eu trabalhei com terceirizados, e sempre foi aquela coisa incômoda de casa grande e senzala no mesmo ambiente, nós todos executando as mesmíssimas tarefas e com uma disparidade de salários e vantagens indiretas colossal. Não raras vezes as empresas simplesmente quebravam e os funcionários ficavam no ora veja, só com o seguro-desemprego pra garantir as migalhas, porque nem o FGTS costuma ser recolhido.

Seguramente não foi pensando no crescimento do País que tanta gente por aí se empenhou bravamente na aprovação desse Projeto de Lei, que transforma a terceirização numa metástase. No vácuo das intenções de deputados favoráveis à medida estão as famílias que representam a grande mídia brasileira, que tentam fazer com que a terceirização ganhe ares de modernidade (sorry, Princesa Isabel!). Com efeito, a revista Época, edição 880 desta semana, traz matéria intitulada A Vanguarda do Atraso, numa crítica direta às entidades que se posicionaram contra a aprovação do Projeto de Lei.

Na contramão da alegação de que o intuito é apenas regulamentar o funcionamento das empresas, está o fato de que o objetivo central do PL é fazer a terceirização chegar até as áreas-fim das empresas. Isto significa que a gente pode passar a viajar sob o comando de um piloto terceirizado, basta a TAM contratar.

Preconceito? Não, informações do DIEESE e do Ministério Público do Trabalho, que promete brigar contra essa aberração. Segundo dados divulgados, a rotatividade observada nas empresas terceirizadas é maior do que o dobro dos contratos diretos. Mas as maiores provas de modernidade ficam por conta dos 80% de mortes por acidentes de trabalho, o que desnuda a ausência de investimentos em treinamento e em segurança (lembraram do que falei sobre o piloto da TAM?), a média salarial 24,7% menor e carga horária 30% maior nas terceirizadas e – la crème de la crème – perto de 90% de ocorrências conhecidas de trabalho análogo à escravidão também vieram de empresas terceirizadas. Mais moderno do que isso, não conheço.

Só pra ilustrar, uma nota publicada na mesma revista Época, edição 879, coluna Expresso:

Caixa terceirização multa

O PL aprovado também cuida de tirar da reta do contratante as consequências das dívidas dos donos de empresas terceirizadas. Isto significa que, ao contrário do que consta da notícia, os terceirizados não vão ter de quem receber se o patrão quebrar.

Então, é isso: em sendo aprovada no final de todos os embates essa tal terceirização nos moldes contidos no projeto de lei, esqueçam os concursos públicos. Sim, porque sua aplicação está vedada ao poder público somente ‘a princípio’. Não demora e um doido aí derruba essa limitação. Aí o que veremos será uma queda vertiginosa na arrecadação de encargos sociais, como o INSS, FGTS, PIS, Cofins e outros quetais, o fim de conquistas como o auxílio-creche, o regime de cotas, o programa de menores aprendizes, tudo em nome da modernidade.

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SÓ OBSERVO

No começo até que foi divertido, mas já está entrando na fase digna de preocupação o quociente de imbecilidade demonstrado por pessoas e instituições Brasil varonil afora. São ratos que querem se transformar em montanhas, enquanto já há montanhas parindo ratos. O exemplo mais gracioso é daquela galera que sai às ruas para se manifestar pelo retorno do regime militar, talvez para não ter mais que sair às ruas para se manifestar, já que automaticamente isso será proibido. 

Achei a coisa mais mimosa as duas moças carregando uma faixa contendo um nome pra lá de comprido, tipo ‘Marcha da família com Deus e o diabo, Glauber Rocha e seilamaisquem na terra do sol pela liberdade e o direito a uma conta no HSBC’. Deu pra cansar só a tentativa de leitura, por isso não decorei tudo. Eu tinha que guardar espaço na memória já carcomida, porque seria de se lamentar jogar na conta do alemão a frase “sonegação não é corrupção” contida num cartaz carregado por dois tontos.

A nota, digamos, menos séria da tarde festiva da Paulista foi um boçalzinho vestido de Tio Sam, com direito àquela cartola ridícula e uma bandeira americana. De início achei que poderia ser um estranho no ninho, mas depois suspeitei que se tratava de um autêntico coxinha que queria mesmo era ser um Big Mac.

A mídia que apoiava a micareta sabiamente não entrevistou ninguém, vai que abrem a boca, né?

Uma vez encerrados os desfiles dos blocos de Revoltadinhos, seria pretensioso esperar que o país voltasse ao normal. Ou ao anormal, já que a turma do ‘quanto pior, melhor’ não desiste de voltar ao poder pela força, e o normal aqui por enquanto é isso: agir para transformar a vida republicana num inferno cotidiano. Mas, enfim, me resta o otimismo inquebrantável.

A normalidade foi, enfim, restabelecida a partir de um artigo sempre inteligente do Reinaldo Azevedo, um comentário nunca vergonhoso do Jabor na TV, guerras escatológicas nas mídias sociais e a boa e velha briga entre os organizadores do evento, que disseram ter levado milhões para a Paulista, em contraponto à planilha da PM que indicava milhares.

Também se fez sentir algo parecido com cotidiano nas conversas de botequim, na beira da piscina e em todos os demais lugares tomados pelos palermas catastrofistas com complexo de vira-latas, que só abrem a boca pra falar mal do Brasil. Segundo consta, até os naufrágios recentes entre a Líbia e a Itália são culpa dos petralhas bolivarianos comunistas. E ai de quem contestar.  

Não é pra rir.

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